A vida continua sem nós

Consumimos os anos, apreciando a beleza da vida que nunca vivemos e jamais viveremos, frente a ecrãs que banalizam a magia e valorizam a banalidade

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Pablo GarciaSaldaña/Unsplash

O mundo é um lugar estranho e cada vez o percebemos menos. Primeiro trocámos completamente a tradição pela tecnologia e depois explorámos a última para recuperar a primeira. Como uma crise de meia idade em que a Internet é o descapotável e o telemóvel a loira mamalhuda.

Apesar de toda a evolução, ainda não sabemos apreciar a simplicidade e pureza da vida, continuando a permitir que a nossa realidade seja mediada pela tecnologia, particularmente por ecrãs.

Tornámo-nos, voluntária e involuntariamente, uma raça de espectadores, retirados do mundo e divorciados do instinto. Só assim se explica que uma espécie milenar precise de instruções sobre alimentação, educação ou algo tão simples como sentir-se confortável na própria pele. Claro que o nosso fascínio doentio pela tecnologia levou a que passássemos grande parte da vida sentados passivamente, deformando os nossos corpos e mentes, pelo menos face ao desígnio evolucionário inicial. Será preciso um T-Rex perseguir-nos para nos mexermos? Ou outra era glaciar basta? Até porque, aparentemente, está mais próxima do que parece.

Assim consumimos os anos, apreciando a beleza da vida que nunca vivemos e jamais viveremos, frente a ecrãs que banalizam a magia e valorizam a banalidade. Ecrãs que nos embrutecem e insensibilizam tanto como drogas ilícitas.

Enquanto o nosso pôr-do-sol acontece, estamos a ver um alheio. Enquanto a nossa filha dá piruetas e faz caretas estamos no Facebook a emocionar-nos com os filhos dos outros.

Quando poderíamos encontrar o amor da nossa vida através de uma troca de olhares no comboio estamos no Tinder a classificar fotografias. Quando devíamos fazer o nosso álbum de fotografias para folhear na velhice, estamos a partilhá-las no instagram em busca de corações falsos. E à noite, quando poderíamos estar a cozinhar para a família aquela receita secreta que só a nossa avó sabia, vemos o Ramsay explicar-nos como concretizar algo que é parte da nossa memória colectiva.

Cada vez mais nos sentamos a ver jogar à bola em vez de o fazer e o mais grave é que ficamos a ver notícias em vez de sermos as nossas próprias notícias.

Por sermos uma legião de espectadores passamos cada vez menos tempo embalados na narrativa do momento e cada vez mais hipnotizados pela interminável sessão de realidade fabricada, abstendo-nos de algo tão primal como conversar. Damos por nós isolados e carentes, exteriorizando a primeira barbaridade que nos vem à cabeça, no primeiro ecrã disponível. E há sempre um, em qualquer local e momento.

Por isso e porque os meios existem, dizemos algo, na vã tentativa de preencher o éter, agora tão desprovido de emoções. Transmitimos assim mais um absoluto nada para os ecrãs dos espectadores, que, tal como nós, vivem vicariosamente,. Amam, choram, riem e lutam através de ecrãs, vivendo e morrendo à frente de um e confundindo a vida com outra coisa qualquer menos com aquilo que realmente é.

Enquanto permanecemos sentados, de olhos vidrados e cabeça baixa, esquecemos o presente e perdemos a capacidade única de aproveitar cada instante da existência. Seja a aparição do sol num dia de Inverno, a barriga de grávida da nossa mulher, a quietude perfeita e imaculada de cada viagem ou a imortalidade de cada beijo. E ainda aqui estamos a olhar para um ecrã.

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