Jakir, o rapaz dos sonhos

Há mais de dois anos, o sol forte obrigou-me a procurar uma daquelas lojas do Martim Moniz que vendem óculos de sol graduados. Optei na altura por uns Rey Ben bem originais. E entrei na vida de Jakir dois passos depois

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Marco Gil

Acredito nas pessoas que se desvendam através do olhar, que falam com a expressão de um brilho que se vê pela retina. Acredito em pessoas especiais ou diferentes.

É assim o Jakir, um rapaz tímido, mas com um coração sem medida ou comparação. Esta história será sempre uma analepse ou prolepse à medida que as linhas da amizade contem aquilo que poderia dar origem a triologias ou ser uma epopeia de acasos bons.

Há mais de dois anos, por finais de Agosto, o sol forte obrigou-me a procurar uma daquelas lojas do Martim Moniz que vendem óculos de sol graduados. Optei na altura por uns Rey Ben bem originais que se exibiam na montra da loja. E entrei... entrei na vida de Jakir dois passos depois. Ia pagar os óculos, mas lá dentro estava um rapaz na casa dos vintes. O balcão era o intervalo para o cenário e o seu sorriso contido e expressão serena eram o bálsamo para o que se viria a passar.

Eu estava com um grupo de amigos e a nossa alegria rapidamente contagiou aquele entreposto comercial, aos poucos, o Jakir começou a soltar-se e conseguimos-lhe as primeiras gargalhas por Portugal. Ele tinha chegado há pouco tempo, o coração dele ainda residia no Bangladesh, acarretava consigo o esforço e sacríficio de uma vida que começava a brotar. Fiquei a saber imensas coisas naquela tarde quente: que ele não era vendedor oficial da "Rey Ben", nem representante da "Armeni", que tinha apenas um primo consigo em Portugal e sonhos... milhões deles por realizar, todos dele por direito, não tinham sequer morada ou telefone fixo, residem naquele brilho que lhe espressa o olhar.

Depois daquela tarde, Jakir passou a ser um instante para a vida. Trocámos contactos e amiúde iamos falando. Até que ano e meio depois, voltei a Lisboa dois dias antes do Natal, faz um ano agora. Acerquei-me do Martim Moniz e percebi que ali coabitam num mesmo espaço várias nacionalidades, que apesar de longe de casa se sentem nela pelos usos e costumes que para junto deles trouxeram. Em todos eles vi um olhar semelhante a do meu amigo. Fui então procurá-lo à mesma loja onde o havia conhecido, encontrei a loja mas o Jakir não. Dentro dela estava outro rapaz do Bangladesh mas sem o mesmo brilho no olhar. No meu Bengali perfeito perguntei pelo Jakir, mas não foi fácil chegar até ele, tive que passar por três indianos, dois paquistaneses e sete bangladeshianos. Ele mudara de loja, passara para uns 300 metros da outra onde trabalhava.

Quando o vi e ainda ao longe confirmei as minhas suspeitas, o Jakir mantinha o mesmo olhar, o sorriso sincero e a expressão carregada de esperança. Não é fácil explicar aquilo que se passou quando ele me viu, talvez defina aqueles momentos a um abraço forte e verdadeiro ou um olhar feliz, profundamente feliz. Havia reencontrado o Jakir e naquele momento percebi que as amizades não se constroem pela convivência, ou pelo comum, elas existem quando são intensas em entrega e sinceridade. O Jakir insistiu que eu estava mais magro e quis oferecer-me três jantares, o português dele tinha melhorado imenso, os sonhos tinham aumentado, mas o Natal iria ser passado sozinho. Ofereci-lhe o meu lar e contei naquele dia a história dele ao mundo.

Tinha chegado dois anos antes a Portugal para trabalhar e ainda não tinha tido a oportunidade de visitar a família, pelo excesso de trabalho. Pelo sacrifício de os ajudar, pela luta diária para uma vida melhor e para poder concretizar os sonhos que o coração lhe guardava. Declinou o meu convite e passou mesmo o Natal sozinho, mas com o coração mais quente. Prometeu-me naquele dia que iria ser feliz e ter outros Natais pela frente. Contou-me também que queria abrir uma loja no Bairro Alto, uma loja dele e descobri-lhe o primeiro sonho.

Existem pessoas que falam com o próprio olhar, que mostram o coração e a alma com a expressão e se abrem com um sorriso, o Jakir é assim. Ele é sereno, atento, delicado e educado, responsável, preocupado e bom. O Jakir acredita que a vida é feita para se viver e nela devemos praticar o bem, sei que por vezes ele é desconhecedor da maldade e isso enriquece-lhe a alma. Conhece mesmo assim e sem que alguém lhe tenha ensinado o significado prático e completo da amizade e se lhe observarmos aquele olhar com sentimento, sentimos-lhe a bondade apenas... sentindo.

Despedimo-nos naquelas vésperas de Natal com o mesmo abraço que demos quando nos reencontrámos e meio ano depois o Jakir tem duas lojas suas no Bairro Alto. Ensinou-me que os sonhos podem sair do nosso pensamento se os agarrarmos com a mesma vontade com que os sonhamos. Temos uma amizade forte, feita pelos ocasos de tantos acasos que a vida nos foi trazendo, estamos juntos sempre que podemos e por vezes até quando não podemos. O nosso abraço continua igual, é apenas dado com maior frequência. E o olhar do Jakir? É o do mesmo menino de 22 anos que conheci no Martim Moniz. Ainda lhe desvenda a alma e por vezes ainda nos devolve a esperança que nós próprios já perdemos. Se o olhar com o coração ainda consigo sentir as batidas do dele, as que lhe trazem outros sonhos.

Admiro-o dos pés à cabeça. Admiro-lhe o esforço e a luta, mas sobretudo a esperança que permanece e se renova. Não podemos escolher a familia, ou quando o nosso clube ganha, quando ficamos doentes, mas podemos escolher os amigos e orgulho-me de ser amigo dele, o rapaz que um dia largou tudo e construiu uma vida com unhas e dentes. Hoje, um ano depois de passar o Natal sozinho, ele acaba de chegar do Bangladesh, foi visitar a família que não via há uns cinco anos. Voltou feliz como foi... Nunca lhe disse, mas ele é uma das minhas maiores inspirações. Pode ser que ele exista para inspirar os outros. E se o mundo tivesse pelo menos mais uma dúzia de Jakir´s, seria um mundo muito melhor. Para ele este será pelo menos um Natal melhor... bastou acreditar nisso.

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