Dos aviões a aterrar

Os de antes vinham com o calor de Agosto para a praia e o baile na terra, os de agora vêm com o frio para ver os pais, conhecer os sobrinhos, apresentar os maridos ruivos e balbuciantes no português, cair nos meus braços sem prenda, sem lágrima que somos sequinhos do Atlântico

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Toque o sino senhor padre, a dor é tão velha que está quase a morrer: os de fora estão a chegar, estão a aportar, estão a aterrar, estão quase aqui. Borrifamo-nos serenamente nas luzinhas e no papel de embrulho e no pai natal e no menino jesus e na popota e na leopoldina... quem os tem espalhados pelo mundo é que sabe o que é que é prenda, o que é que é natal, o que é que dói e o que é que alivia a dor surda de ter uma parte de nós na Suíça ou na Suécia, em Angola ou em Aberdeen, em Nova York ou na Nova Caledónia.

Os de antes vinham com o calor de Agosto para a praia e o baile na terra, os de agora vêm com o frio para ver os pais, conhecer os sobrinhos, apresentar os maridos ruivos e balbuciantes no português, cair nos meus braços sem prenda, sem lágrima que somos sequinhos do Atlântico (ou pensavam que estavam no Mediterrâneo das mães chorosas e das viúvas uivantes de negro?!), sem um som que seja... o sacrossanto vocábulo “saudade” é inútil de curto, não nos servem de nada as palavras para nos abraçarmos, para enterrar o nariz no ombro dum irmão.

Eu, que já estive do outro lado desta história, não faço aeroportos (Chegadas/Arrivals); não sei quem dizia que era o local mais feliz da Terra... disparate! A felicidade é serena e sossegada, a uma semana do natal as Chegadas são o sítio mais enervado da cidade, a tensão do colectivo ensopa-nos como se tivéssemos bebido 16 bicas: espiga-se-nos o pêlo e faz-nos tremer os dedos mesmo não sendo nada connosco, é a felicidade do adolescente prestes a perder os três, não a do amante saciado.

Eu não faço aeroportos, eu espero-os sossegado em casa, de pijama e mal lavado (que é assim que os meus íntimos sabem que o são), fruo silenciosamente sorridente o tempo entre o aterrar e o cá chegar a casa (o tempo dos pais e dos sobrinhos deles) como um puto que já viu os embrulhos, como um gato de Cheshire que já viu a lata de atum a passar e sabe que é só uma questão de tempo.

Espero que me toquem à porta, que subam as escadas (o meu prédio não tem elevador), espero pelo último lance para lhes abrir a porta... fingimos um ar “cool” mas traímo-nos no abraço demasiado longo, demasiado apertado, a cheirar o cheiro absolutamente único de quem se ama.

Não fosse isso e a um distraído quase que pareceria que só não nos vemos há uma ou duas semanas, que não temos mares e continentes inteiros a separar-nos habitualmente. Saltam sapatos, afundamo-nos no sofá, a conversa repega onde tinha ficado há 11 meses e tal atrás. Comemos, bebemos, obrigam-me a contar-lhes as bolandas políticas da nação, eu gozo-lhes com as construções gramaticais estrangeiradas, com o escorregar nos “false friends” lexicais, eles dizem que estou mais gordo, eu deito-lhes a língua de fora, eles devolvem-ma.

Tiram pequenas preciosidades que cá não há dos bolsos e das malas e da memória, trocamos empurrões e livros e discos e mínimas pulhices fingidas das que são só para a família, sentamo-nos muito uns em cima dos outros no sofá, falamos de coisa nenhuma até de madrugada, bebemos demais, a mim deixam-me fumar na sala (vê-se logo que é natal!), às vezes paramos calados só a olhar uns para os outros, que somos tão velhos e tão uns dos outros que nem o silêncio nos é desconfortável.

Nunca pergunto quando é o avião de volta para o sítio deles lá longe, falamos falamos falamos, da vida e da morte e das coisas pelo meio, falamos tanto que às vezes até o tempo parece parar para nos escutar, encharcamo-nos uns nos outros para o voltar, gozamos o momento, empurramos com a barriga o desgosto que a linguagem é inútil para o temos, para o que somos uns dos outros. Fazemos tudo menos chorar, porque só isso é que não vale... chorar.

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