Hoje sonhei

Hoje sonhei que aquela hora e meia do Jornal da Noite não tinha uma única notícia má. Tudo corria bem

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Kitato/instagram

Hoje sonhei que a vida era diferente, que o mundo dava passos sem medo, que se avançava sem olhar por cima do ombro. Andava pelos bairros do mundo e todos se cumprimentavam. Todas as idades e todas as raças estavam numa comunhão perfeita onde a sintonia se fazia presente. Os animais e a natureza faziam parte da família. Estavam connosco e nós com eles, a cem por cento. O dia não tinha nuvens e a chuva tinha dado tréguas. Eram momentos de harmonia e de paz constante. O sol era para todos.

Hoje sonhei que tinha ido passar o fim-de-semana a Paris. Tínhamos chegado há poucas horas. Depois de nos instalarmos no hotel, fomos jantar ao Le Carillon com amigos no dia 13 de Novembro. Eram dez e meia da noite e as lágrimas caíam de tanto rir. Histórias contadas, experiências partilhadas. Já estávamos bem regados confesso. O vinho era do camandro. Que serão aquele.

Hoje sonhei que suava em bica em pleno Bataclan ao som de “Save a Prayer”. Eu nem gostava muito de rock, mas os Eagles Of Death Metal converteram-me. Que malhas incríveis ouvi naquela noite. Quando o concerto acabou, encontrámos a banda nos copos. Ficámos com eles. Que serão aquele.

Hoje sonhei que tinha fotografado o World Trade Center. Abusei no filtro do Instagram mas rendeu-me valentes "likes". Ainda tinha a fotografia no meu telemóvel. Mostrei à minha família quando cheguei a Portugal. Pela expressão dos meus primos, estavam com inveja. Não confessaram mas eu percebi.

Hoje sonhei que andava por Raqqa em reportagem. O centro estava cheio de gente. Prédios altos, praças ao barrote. Era dia de festa. Entrevistei milhares de pessoas, aprendi um pouco de árabe, ofereceram-me comida. A expressão daquela gente era um misto de novidade com alegria. Não era todos os dias que ocidentais iam conhecer o seu mundo. Deram-me informações, recomendaram-me restaurantes e confesso: a comida, apesar de estranha à primeira vista, era de comer e chorar por mais. Bons dias que passei lá. O sol brilhou durante toda a minha estadia.

Hoje sonhei que muçulmanos, cristãos, budistas, judeus, hindus e ateus jantavam à mesma mesa. Cada um contava anedotas sobre a sua religião. Ou sobre a falta dela. Na verdade, quando me apercebi, achei que alguém podia levar a mal mas pela cara vermelha de tanto rir, pouco se importavam. Aquele jantar foi tão marcante que pelo menos uma vez por ano se juntavam para celebrar. Não tinham grande motivo. Apenas gostavam de estar uns com os outros. Os muçulmanos faziam questão de mostrar as mesquitas, contavam ao pormenor a história do Islão. Chegaram-me a mostrar o Alcorão. Não percebia aquela letra mas compreendi. Aquilo era mesmo importante para eles. De madrugada entrámos todos dentro de uma igreja. Os budistas e os judeus riam-se porque um dos cristãos tinha tropeçado no tapete da entrada. Mostravam-se interessados. O budista quis levar uma Bíblia para casa. Quis aprender. Estava curioso. Foram dias bons aqueles.

Hoje sonhei que as únicas armas existentes no mundo eram as do paintball. Todas as pessoas do planeta terra se juntaram num enorme descampado e começaram a jogar. Distribuímos as equipas. Cada equipa tinha pessoas de diferentes etnias. Não me lembro bem mas acho que foi um americano que tinha acertado mesmo nas nádegas de um soviético. Eu assisti. O americano pediu-lhe desculpa mas rapidamente se abraçaram. O vodka veio a seguir. Grande piela que aqueles dois apanharam.

Hoje sonhei que no parlamento todos os partidos , apesar das suas divergências, cantavam “A Portuguesa” celebrando a honestidade. À porta da Assembleia milhares de portugueses com cartazes gritavam: “Obrigado!!”. O país estava bem. As pessoas estavam bem. O dinheiro era um mero meio de troca.

Hoje sonhei que aquela hora e meia do Jornal da Noite não tinha uma única notícia má. Tudo corria bem. Na ONU todos sorriam. Na Casa Branca todos brindavam. No Vaticano todos cantavam. Circulava-se sem problemas nas auto-estradas, a Nigéria estava em festa e Boko Haram era a discoteca mais conhecida. Tinha um grande espaço ao ar livre e todos dançaram até de manhã. A pobreza tinha desaparecido. No Rio, os habitantes das favelas tinham um banquete gigante. Ofereceram tudo aos turistas e aos habitantes mais próximos. Mostraram como se dança um bom samba e o funk ficou para depois.

Hoje sonhei que o mundo era diferente e que sendo redondo, todos se acabavam por encontrar. Um mundo que dava sem esperar nada em troca. O entendimento, a compreensão e o valor das coisas era supremo. O abraço era geral, a confiança era a palavra-chave e o amor era a lei. Havia tanto mais para sonhar...

Depois acordei…

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