Como o MasterChef Júnior se transformou numa campanha anti-assédio

Comentários sexuais e criminosos relativos a criança de 12 anos que participa em programa de culinária geraram uma resposta viral no Twitter. Na "hashtag" #PrimeiroAssédio milhares de vítimas de assédio estão a partilhar as suas histórias

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A hashtag tornou-se internacionalmente viral Pixabay

Valentina é uma criança. Tem 12 anos e é uma criança. As frases têm sido repetidas como quem tenta educar, consciencializar, mudar mentalidades. No Brasil, a polémica estourou na semana passada, quando as redes sociais foram invadidas por comentários sexuais e criminosos em relação à menina que participa na primeira edição infantil do programa MasterChef no Brasil. Da revolta perante o assédio a uma criança surgiu uma campanha que está a correr o mundo e a pôr milhares de mulheres a partilhar histórias de abusos através da "hashtag" #PrimeiroAssédio. Muitas delas estão a falar do assunto pela primeira vez — e até a Unicef está a aproveitar a oportunidade para reforçar campanhas sobre violência sexual e pedofilia.

Nas redes sociais, mesmo usando perfis com imagem própria, foram muitos os que escreveram sem qualquer constrangimento comentários criminosos. "Ela tem os cabelos lisos e loiros, e os olhos claros. "Se tiver consenso é pedofilia?", lê-se no Twitter de um utilizador. "Viu o penta do São Paulo já aguenta, dizem", escreveu outro.

Não demorou a que a resposta acontecesse. No Twitter do colectivo feminista Think Olga (@ThinkOlga), conhecido pela luta contra o assédio em espaços públicos e outros tipos de violência contra a mulher, foi criada a etiqueta #Primeiro Assédio e pedida coragem às mulheres. Contem quando foi a primeira vez que foram assediadas e exponham um problema que, erroneamente, continua a ser encarado como “brincadeira” ou “normal”, pediram.

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Valentina tem 12 anos e é uma das participantes do MasterChef Júnior

E muita gente contou — mais de oitenta mil até ao momento de publicação deste artigo. Algumas das histórias são chocantes. Falam de vivências frequentemente ignoradas mas que provocam profundo mau-estar e até trauma. “12 anos e aquele homem nojento encostou em mim no ônibus [autocarro], senti minha perna molhada, até hoje tento esquecer o que aconteceu”, escreve uma mulher. “Com 11, fui agarrada por dois colegas mais velhos na escola e ao reclamar a diretora disse que eu dei motivo”, partilha outra.

Mudar a educação

Para Viviana Santiago, do Think Olga, a educação dada em casa é um importante ponto de partida para alterar mentalidades. "Precisamos revisitar a maneira como a gente socializa as meninas e os meninos", disse ao El País Brasil. A forma como são repartidas as tarefas domésticas ou o facto de se conceber determinadas funções como femininas e outras como masculinas pode ser já uma forma de discriminação e de aceitação de uma cultura errada, acredita. E os relatos feitos com a "hashtag" #PrimeiroAssédio — onde frequentemente há familiares envolvidos — são uma prova disso. “A cultura do estupro começa tão cedo na nossa vida, que a gente acha que nasceu assim."

O colectivo brasileiro já tinha alertado anteriormente para o problema do assédio sexual através da campanha Fiu Fiu, que mapeou episódios desse tipo de violência em espaços públicos e divulgou a história de uma das criadoras do Think Olga Juliana de Faria, vítima de assédio aos 11 anos. Com o tema a rolar nas redes sociais, o Ministério da Educação do Brasil decidiu mesmo que, neste ano, o tema da composição do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) será "A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira".

A "hashtag" tornou-se internacionalmente viral e está também a ser utilizada pela Unicef Brasil e pelo portal do Governo Federal do Brasil para reforçar campanhas contra o assédio e a violência sexual, particularmente a praticada sobre menores.

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