Há jovens no estrangeiro que querem votar, mas o sistema não os deixa

Os jovens portugueses no estrangeiro seguem atentamente a campanha eleitoral mas queixam-se dos obstáculos ao voto: embaixadas em silêncio e informações contraditórias. A CNE admite o problema

André Escórcio Soares, 32 anos, é professor de Recursos Humanos na Universidade de Coventry, no Reino Unido DR
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André Escórcio Soares, 32 anos, é professor de Recursos Humanos na Universidade de Coventry, no Reino Unido DR
Inês Felizardo, 18 anos, vai começar Direito na Universidade de Cambridge, no Reino Unido DR
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Inês Felizardo, 18 anos, vai começar Direito na Universidade de Cambridge, no Reino Unido DR

Inês Felizardo arruma por estes dias o quarto onde viveu os seus 18 anos, tira as últimas "selfies" com os amigos e despede-se de Lisboa. Esta semana ruma a Cambridge, no Reino Unido, onde vai estudar Direito, depois de ter terminado o Liceu Camões com uma classificação final de 20 valores. Volta a 4 de Outubro para votar nas legislativas.

O regresso definitivo é que não tem data marcada: “Adoro o meu país, mas Portugal não me dá as mesmas possibilidades de futuro e de carreira”. É provável que Inês se cruze no aeroporto com Simão Valente, de 28 anos, docente de Português em Oxford. Vem votar a Portugal e regressa a Inglaterra no mesmo dia. “O processo de alteração da residência é mais complexo do que deveria ser”, explica ao PÚBLICO. “Parte ainda do princípio de que quando as pessoas vão viver de um sítio para outro, é para sempre. O mundo de hoje não funciona assim, e a emigração actual não é a dos anos 60, excepto nos números”.

Nem nos números, na verdade. Em 1966, auge da sangria migratória dessa década, terão saído do país 120.239 portugueses. Em 2014, 134.624 partiram para o exterior. Mas é uma emigração de um novo tipo – sobretudo a jovem. O PÚBLICO falou com vários portugueses com menos de 35 anos que saíram do país para estudar ou trabalhar. São quase todos altamente qualificados, nem todos saíram empurrados pela crise e poucos admitem regressar tão cedo. Perguntámos como estão a acompanhar a campanha e se pretendem votar. Todos querem participar nas eleições, mas apontam para inúmeros obstáculos.

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Vasco Figueira, 33 anos, é engenheiro informático em Londres, no Reino Unido DR

Da Nova Zelândia chega um exemplo. A Rita Bento-Allpress, 32 anos, doutorada em Psicologia, foi dito em Agosto que para votar teria de se deslocar à Austrália, a 2160 quilómetros e 340 euros de distância de Auckland. Isto, porque Rita seria a única eleitora inscrita na Nova Zelândia. Segundo informação prestada por um cônsul honorário, o voto por correspondência não seria uma alternativa possível. Mas Rita acabou por receber na semana passada o boletim de voto.

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Simão Valente, 28 anos, lecciona Português na Universidade de Oxford, no Reino Unido DR

Já Carla Félix, 32 anos, economista do Banco Africano para o Desenvolvimento na Costa do Marfim, não recebeu resposta alguma às perguntas que dirigiu à embaixada de Portugal em Dacar (Senegal), responsável pela representação lusa naquele país. Candidata pelo Livre/Tempo de Avançar no círculo Fora da Europa, continua recenseada em Portugal, e é por cá que tentará votar, se o trabalho o permitir.

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Carla Félix Silva, 32 anos, é economista do Banco Africano para o Desenvolvimento, na Costa do Marfim DR

Pedro Manuel Mendes, 30 anos, licenciado em Relações Internacionais e a viver em Lyon, França, também vem a Guimarães votar por dificuldades no recenseamento. Da Bélgica chegaram ao PÚBLICO queixas sobre falhas informáticas nos serviços consulares que, ao longo de Julho e Agosto, dificultaram os processos de recenseamento.

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Mafalda Pratas, 21 anos, é estudante de Economia e Ciência Política na Universidade do Illinois, nos EUA DR

Mafalda Pratas, 21 anos, estudante de Economia e Ciência Política na Universidade do Illinois, nos Estados Unidos, desistiu. “Não irei votar, porque ainda não consegui perceber como o posso fazer e vivo muito longe de qualquer embaixada e consulado”, lamenta, comparando as dificuldades do sistema português com a eficiência do norte-americano – Mafalda tem dupla nacionalidade e também vota para a Casa Branca. “Sinto-me um pouco desrespeitada por tornarem o processo tão difícil. Sinto que ninguém quer saber do nosso voto”, lamenta.

André Escórcio Soares, 32 anos, professor de Recursos na Universidade de Coventry, em Inglaterra, também não vai conseguir votar. “Seria obrigado e deslocar-me cerca de 300 quilómetros para me ir registar e mais 300 para ir e vir a Manchester votar”, explica. “Não se percebe como é que ainda não é possível o voto electrónico”, afirma.

Contactada pelo PÚBLICO, a Comissão Nacional de Eleições admite que "um número significativo" dos 464 pedidos de informação de eleitores recebidos até segunda-feira são de portugueses no estrangeiro, mas sem quantificar. Quanto às dificuldades de recenseamento, Paulo Madeira, secretário e coordenador dos serviços da comissão, aponta o facto de serem "poucos" e de "dimensão reduzida" os órgãos permanentes da administração eleitoral com funções dirigidas aos eleitores no estrangeiro: a Comissão Organizadora do Recenseamento Eleitoral dos Portugueses no Estrangeiro (COREPE), do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), a área eleitoral da secretaria-geral do Ministério da Administração Interna) e a própria CNE. "É uma opção que, como todas, tem vantagens e inconvenientes: o seu baixo custo e a elevada e diferenciada participação cidadã são indiscutíveis vantagens; deficiências técnicas, de formação e de informação podem colocar-se no outro prato da balança", disse ao PÚBLICO.

Ainda esta semana, o Ministério da Administração Interna veio admitir que se esqueceu de colocar "Portugal" no destino dos envelopes disponibilizado para o envio dos votos por correspondência. O MNE e os CTT estão neste momento a contactar serviços postais de todo o mundo, para garantir que os votos provenientes do estrangeiro cheguem a Portugal.

Economia a mais

Nem todos os jovens portugueses poderão votar, mas não deixam de acompanhar a campanha. A Internet e as conversas com amigos e familiares são fonte de informação comum aos expatriados inquiridos pelo PÚBLICO, tal como é o desagrado com o teor e o conteúdo dos debates.

Inês critica o peso excessivo da economia e das finanças e gostaria de ver abordado o tema dos refugiados, os direitos LGBT e a educação. Pedro lamenta que o debate ande “muito à volta do que se passou até aqui e muito pouco do que será o futuro”. Carla Félix nota o silêncio sobre a diáspora, que “não tem tido a atenção, o cuidado e o respeito que merece, apesar do seu enorme potencial para as soluções do país”. Carla Miranda, designer de 35 anos na Austrália, pede propostas para “tirar partido” do grande número de portugueses a viver fora: captar poupanças e, por essa via, preparar o seu regresso. Simão gostaria de saber porque é que há “um único deputado negro no Parlamento” (Hélder Amaral, do CDS-PP). “Basta-me sair à rua em qualquer cidade do país para me aperceber que o órgão máximo de soberania não reflecte a composição demográfica do país. Portugal é um país multicultural, mas não o é a sua elite”, afirma o lisboeta para quem “os documentários do Bruno Nogueira sobre a música popular”, os dois irmãos adolescentes e a aula que teve sobre Aristides de Sousa Mendes fazem disparar a saudade.

José Miguel Delgado, 32 anos, investigador na Universidade de Potsdam, na Alemanha, estranha que se debata “se o ensino deve ser público e universal, se deve haver rendimento mínimo garantido ou se deve haver mais vagas em infantários públicos”. O académico defende que “são condições absolutamente básicas que nenhum alemão ou alemã discutiria”. Para Gil Henriques, que aos 22 anos está a iniciar um doutoramento em Biologia em Vancouver, no Canadá, a quebra do financiamento à ciência e ao ensino superior é um tema prioritário. “Entristece-me que, tendo sido feito esse investimento colectivo e formado uma geração extremamente bem preparada, desperdicemos agora todo esse esforço”, lamenta. O jovem cientista é exemplo disso: “Não sou nem suficientemente patriota, nem suficientemente masoquista, para voltar para Portugal neste momento”.

Mafalda, a futura economista luso-americana, quer ver debatido outro tipo de “reforma do Estado” – a institucional. “As falhas democráticas e económicas de uma nação não são culturais ou inevitáveis, mas sim consequências de falhas institucionais que podem ser corrigidas. Não estamos condenados à corrupção nem à chico-espertice”, afirma. Vasco Figueira, engenheiro informático de 33 anos em Londres, tem outra visão do desenvolvimento. Quer ver debatida de forma “séria” a “crença no endividamento público como gerador de crescimento”.

Outros jovens assumem uma dieta informativa. “Seguia as notícias até me aperceber que me estava a fazer fisicamente mal à saúde ler constantemente sobre a destruição de valores importantes e do meu país”, conta Carolina Henriques, 22 anos, antropóloga de formação a iniciar um doutoramento na Dinamarca. Rita, a solitária eleitora portuguesa na Nova Zelândia, está em processo de “afastamento emocional” do turbilhão mediático. “Não leio jornais, não sigo ninguém no Facebook que partilhe notícias de Portugal e, quando falo com a minha família ao fim-de-semana, tento sempre contornar qualquer tema sócio-político que apareça”, conta. Mas ambas vão votar. Como todos os jovens inquiridos pelo PÚBLICO votariam, caso pudessem.

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