Diálogos de Supermercado, ou de “quer saco?” a “quer contribuinte?”.

Com a mesma atitude cordial com que se propunham sacos de plástico, propõe-se agora o registo eletrónico dos dados pessoais do cliente

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Ralph Aichinger/Flickr

Longe vão os tempos em que os sacos de plástico eram gratuitos. Foram tempos de simbiose entre estabelecimento comercial e cliente: o primeiro facilitava o transporte de mercadorias, o segundo pagava com publicidade. Desta forma alicerçado, o hábito de fornecer sacos de plástico não requeria qualquer tipo de diálogo.

Quando os sacos de plástico passaram a custar três cêntimos, tudo mudou. Sob a regra de que o cliente deve ser previamente informado dos custos daquilo que adquire, instaurou-se um novo hábito ilocutório: “– Quer saco?” seguido de uma resposta afirmativa ou negativa (e, no primeiro caso, de um número cardinal). Apesar da diminuição da rentabilidade para o cliente, registou-se uma grande frequência de respostas positivas. Assim se garantia a cordialidade do gesto: o operador antecipava as necessidades do cliente e propunha-lhe uma solução adequada.

Mas tudo voltou a mudar. Com a subida de sete cêntimos no preço dos sacos de plástico, aquilo que fora sintoma de prestabilidade seria agora entendido como venda furtiva. Tornava-se premente que fosse o cliente a manifestar a sua necessidade, e não o operador a adivinhá-la.

Desta forma assistimos ao nascimento, crescimento e morte de uma forma de diálogo. “Quer um saco?”, pergunta inusitada nos longínquos tempos em que os sacos de plástico eram gratuitos, tornou-se banal e invariavelmente associada a um determinado contexto.

Não deixa de ser curioso notar que o declínio deste diálogo se fez acompanhar pelo crescimento, e actual estabelecimento, de outro. De “Quer saco?” chegámos a “Quer contribuinte?”. Tal como a primeira é a versão curta de “Quer um saco no qual transportar os produtos adquiridos?”, a segunda é a versão curta de “Quer indicar, para efeito de dedução em sede de IRS, o seu número de contribuinte na factura?”.

Apesar do burburinho social que acompanhou as medidas de incentivo ao cumprimento das regras fiscais, é cada vez mais comum assistir a uma resposta afirmativa à segunda questão, seguida do debitar de nove dígitos e, em muitos casos, um nome e uma localidade – agora também em supermercados. Com a mesma atitude cordial com que se propunham sacos de plástico, propõe-se agora o registo eletrónico dos dados pessoais do cliente. Com a mesma facilidade com que se gastavam três cêntimos, informa-se agora a casa desses dados.

Mas há uma pequena diferença: dados fiscais não são três cêntimos. Três cêntimos não põem em causa o anonimato de ninguém, dados fiscais, principalmente se acompanhados de nome e localidade, sim. Os três cêntimos têm um destino certo depois da sua chegada à caixa de supermercado, os dados fiscais não. Em que tipo de base de dados são inseridos? Acompanhados de que informações? Serão essas bases de dados comercializáveis? A maioria dos clientes – mesmo sabendo que existem instituições focadas no controlo deste tipo de coisas – desconhece a resposta a estas questões. Torna-se, por isso, difícil calcular o custo-benefício de “querer contribuinte”, quando tal não acontecia no caso de “querer saco”.

Se a linguagem, e o modo como a utilizamos, serve os nosso interesses – disso é prova a mudança do diálogo acerca de sacos de plástico –, porque empenhamos os mesmos recursos linguísticos para tratar coisas tão fundamentalmente diferentes? Confesso ignorar a resposta.

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