O horror continua dentro de momentos

Às vezes percebo os amigos que fogem para o campo ou deitam fora a televisão, mas não me consigo desligar, não sei como permitir-me a ilusão de que as coisas não estão a acontecer

Foto
Bonnaf / Flickr

Um bebé de seis meses morto à facada pelo pai com vídeo enviado à mãe, uma garota assassinada a traumatismos cranianos, mais vinte ou trinta namoradas e esposas massacradas porque “se não és minha não és de ninguém”, um ou dois velhos asfixiados com sacos de plástico, três ou quatro negros fuzilados ou atropelados de propósito pela polícia, meia-dúzia de decapitações junto ao mar ou directamente sobre a areia do deserto, 53 miúdos devolvidos pelos “pais” adoptantes, uma bomba aqui, um molho de miúdas raptadas para escravatura sexual há mais de um ano, um bombardeamento a "drone" ali, a fome do costume e as centenas semanais a afogarem-se no Mediterrâneo, finalmente, só para compor o ramalhete, um cão atirado à falésia com um tijolo ao pescoço; a minha velha televisão só sabe escorrer horror.

O "pivot salta da velhinha queimada com pontas de cigarro para o Bayern-Porto ou o último "single" dum dos filhos do Carreira como se não precisássemos duma pausa; eu inspiro e expiro lento como aprendi com o ioga, repito-me a mentira que dizemos à miúda quando ela se assusta com as histórias dos livros de infância dos avós “É só a brincar, é só a brincar... porque é que alguém haveria de torturar uma velha por 30 euros”.

Tinha uns dez anos quando descobri os enormes volumes da “História do século XX” dos meus pais (Edições Abril, português do Brasil). Cada volume pesava mais do que eu mas a cobertura ao caricaturismo jornalístico fazia o esforço valer a pena, até ao 4.º volume. O 4.º volume era enorme página após enorme página de fotografias da libertação dos campos de extermínio nazis: as pilhas de cadáveres esqueléticos, as bocas dos fornos, as camaratas esquálidas, os sobreviventes só olhos e osso, pior ainda os miúdos a mostrar as tatuagens através do arame farpado, pior ainda os montes de fotografias de família, de dentes de ouro, de cabelo rapado à força.

Daí há muito estar tão vacinado contra o homem essencialmente bom como contra o homem essencialmente mau, contra o bom selvagem do Rousseau, contra o homem novo que há de surgir logo que a "intelligentsia" nos obrigue a mamar a obra completa do Manoel. Xiii que o moço é um pessimista à Schopenhauer, que é estruturalmente de direita, que não crê no activismo online, nos benefícios do estado-social e da semana de 35 horas... ó filhos vão lá cantar Joan Baez para outra freguesia que para tolinhos já me basta quem acha que o 44 é um "prisioneiro político" e quando me apetece chorar também tenho o “Ser Solidário”.

Por cada Bach há uma Le Pen, por cada Gandhi um Fritzl, por cada Voltaire um pinochezinho qualquer que “só está a cumprir ordens” enquanto empurra criancinhas para debulhadora; temos todos justificações para a nossa pequena parcela de horror: “Ela não me amava”, “o grupo pressionou-me”, “a minha mãe não me abraçou que chegasse”, “o sucesso é isto”, “não podemos todos ser santos”, “the devil made me do it”, pois sim irmão... segura a braguilha, morde a língua, o bem é óbvio, a virtude não precisa de justificações.

Às vezes percebo os amigos que fogem para o campo ou deitam fora a televisão, mas não me consigo desligar, não sei como permitir-me a ilusão de que as coisas não estão a acontecer. E no entanto o barulho, o ruído, é tanto que o interior da minha cabeça chocalha como se estivesse cheia de cacos de vidro coloridos, mais a carrinha dos lixos-monstros, e um trem de cozinha aos saltos, e gritos de criança (ou de gata no cio), gritadas citações do Eça (“O Conde de Abranhos”), duas ou três travagens a fundo, um banqueiro a rir-se, uma sirene, alguém a chorar baixinho e o cheiro dos travões dos combóios.

Ó sangue do meu sangue, antes a cova que o calar, tudo menos a vergonha do silêncio. E minha mãe quando eu morrer, ai chore por quem muito amargou.

Sugerir correcção
Comentar