Aqui ou lá fora? Tens de emigrar para ser alguém?

Mas será o pós-posmodernismo este cómico-trágico panorama, esta vertiginosa sensação de que vivemos o "Fim das Possibilidades"?

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Vivemos o tempo em que os dias são curtos para tudo que ainda se quer ser. Estamos aqui, porque tem que ser, porque sem isso não podemos manter a vida quotidiana nos padrões mínimos das normas em sociedade sobre as quais nos educaram. Aí sim, se há geração capaz, lutadora e com fibra são os ditos Millenialls. Maioria "over-qualified" quando chegam aos 30, com percurso profissional internacional, grandes responsabilidades a seu cargo. Mas a pedinchar, "aqui", por um lugar à altura, de olhos enevoados pelas oportunidades de criação de próprio negócio ou viciados já na pressão incutida do "tens que emigrar para ser alguém". Não somos excepcionais, somos é muitos e muito bons.

E o "aqui" para os que "não querem seguir viagem", parafraseando J.B em "O Fim das Possibilidades", para os que têm e querem ficar? Para esses que estão constantemente a fazer por chegar lá. Àquele lugar onde iremos fazer aquilo em que sabemos que somos mesmo bons, aquilo que nos faz sentir preenchidos porque somos reconhecidos e recompensados de acordo, sem nos fazer sentir mal por vivermos os nossos direitos. Onde há problemas e percalços no percurso, mas onde sentimos que andamos para a frente, amparados por aquilo que construímos e que tem valor, aos nossos e aos olhos dos outros.

Os que daqui saem aparecem, ironicamente agora, destacados nos jornais de cá com o seu trabalho reconhecido. Agora, que estão "lá fora". Lá deixam-nos fazer acontecer. Faz-se trabalho válido e valioso, onde ambas as partes são vencedoras e merecedoras de mérito. Aqui o trabalho é igualmente valioso mas, tantas vezes, irreconhecível logo desde a sua nascença. Os discursos revivalistas do pós-guerra repetem-se sem novidade. E nós somos ainda agentes e vítimas dele.

As exceções e contra-argumentos sempre existiram, e ainda bem, pois fazem parte da realidade também e do pseudo equilíbrio do "status quo", era após era. Mas mesmo com o sol, o mar, a segurança e suposta qualidade de vida, os números do turismo a crescer, a oferta cultural e lúdica vibrante e o ano da felicidade a entrar na metrópole criativa do país, a realidade é que o "aqui" continua a ser para muitos, aos olhos da razão, o lugar do aperto, da injeção de medos e angustias. Porque, ainda, assustadoramente ainda, aqueles que fazem parte dos grupos consertados são quem tem o poder e quem consegue, na prática, crescer dignamente no "aqui".

Mas será o pós-posmodernismo este cómico-trágico panorama, esta vertiginosa sensação de que vivemos o "Fim das Possibilidades", que Jean-Pierre Sarrazac tão bem retrata nesta sua obra? É de facto no verbo, na narrativa tão coerente como crivada de metalinguagens (fundamentalmente o Livro de Job da "Bíblia"), que Sarrazac consegue dar matéria e força para a tão conseguida encenação do duo Nuno Carinhas e Fernando Mora Ramos.

J.B. , personagem interpretada por Paulo Calatré, encontra a salvação na possibilidade de escolha. Esse parece ser o bem maior que atualmente temos. Ou embarcamos na viagem, sempre a descer para ser mais fácil, ou afundamo-nos no "aqui". Mas a escolha de J.B é uma terceira e oferece resistência à voz da viagem. O que provoca alguma perplexidade, aos olhos do que se sente e vive nos dias de hoje, é que o sujeito afirmativamente decide o seu fim como libertação do "aqui". Cristãmente, a morte como salvação. Se formos por São Tomas de Aquino, J.B. escolheu por vontade a morte e, por isso, não se salvou, mas sim libertou-se. O fim como começo da liberdade, do ser feliz, sem medos, sufocos nem condições predefinidas.

A brilhante concretização cénica deste texto, repleto de ironias, a cenografia e o desenho de luz que a acentuam, fazem-nos refletir sobre a dualidade de que não há fim nem início das possibilidades. Há a escolha da liberdade. A resignação de Mamadu com o "aqui" chega-nos a convencer por momentos que ele é sinónimo de lucidez, mas rapidamente o texto e a encenação nos encaminham para outras possíveis leituras. A imagem do fecho da peça surge como o culminar da libertação. O verde estridente da relva, dos amigos em conversa corriqueira. Este estado onírico em slow motion, como anámnesis (recordação). Ou será este estado verde reflexo da esperança de um futuro melhor que J.B. continuamente tenta aniquilar?

Em tão boa hora vem esta análise sobre o nosso aparente beco cheio de possibilidades. Não traz soluções nem pretende, coloca em perspetiva e confronta-nos como um espelho. Um dever que só o Teatro, bem posto como nesta peça, consegue provocar. Não perca o que de realmente bom temos no "aqui" e agora. No TNSJ até dia 27 de março, deixe-se afetar, sem medo, por JB, o Oponente, Mamadu ou por Deus.

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