Anteu e o centauro

Somos como o Anteu dos gregos antigos, quanto mais nos atiram ao chão, mais rijos nos reerguemos

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Martin Fisch/FLICKR

Nós queremos crer que não, que somos um bicho diferente, que à força de escrever poesia e lavar as mãos antes de ir para a mesa nos isentamos do terror, que se recalcarmos e recalcarmos e recalcarmos mais um bocadinho a selvajaria eventualmente nos desaparece dos genes. Queremos acreditar, como o Frederico, que é preciso olhar para o abismo para o abismo nos devolver o olhar... conversa! O abismo sabe bem quem nós somos, o abismo está em nós desde o início, logo por debaixo do verniz, a rir-se da fantasia de sermos o bicho que não é um bicho, o bicho que passa metade do tempo a achar-se superior aos outros bichos e a outra metade a achar-se pernicioso aos outros bichos, mas nunca parecido, nem sequer relacionado com o resto da realidade.

Domamos o instinto, envergonhamo-nos do nosso corpo, patologizamos funções necessárias, se damos um traque depois de comer um iogurte declaramo-nos “intolerantes à lactose” e tomamos um comprimido qualquer, ilegalizamos a cannabis (plantinha malévola) enquanto nos encharcamos em anti-depressivos e achamos tudo isto normal, um problema médico no máximo, nunca nada que passe pelo caos social em que vivemos, em que vamos sobrevivendo.

E a questão é e se a bem não for possível? E se a violência for necessária? Não podemos viver no mundo sem fazer parte dele por isso é melhor contarmos com a hipótese das nossas pacíficas manifestações, os nossos civilizados protestos, as nossas assembleias populares de mãozinhas no ar a abanar, os nossos abaixo-assinados e greves com serviços mínimos e petições via facebook não derem em nada. E se os gajos nos obrigarem mesmo a ser brutais, como é?

Porque as margens do rio são como o centauro do Gramsci, a face humana e empática do secretário-de-estado-dos-pobrezinhos esconde o corpo bestial dos armadurados polícias de intervenção, bem munidos de cassetetes, gás pimenta, jactos de água, balas de borracha e carros blindados de “pacificação urbana”... e se (quando) o molho engrossar também está previsto como e onde nos vão largar a tropa a sério em cima. E o problema é se o rebentar dos diques quando vier vier carregado de porrada e tiros e fluídos corporais? E se não for uma primavera de multidões cantantes e flores nos canos das espingardas?

A dúvida é saber se depois de nos forçarem a deitar o Gandhi e o Thoreau e o Lennon ao lume nós saberemos parar, parar antes que as monstruosidades nos transformem em monstros? Porque é fácil apelar à guerrilha urbana no café, não custa nada enforcar os corruptos e pedófilos todos na caixa de comentários do "Correio da Manhã" e desta brutalidade sossegada e quotidiana à guerra a distância é muito mais curta do que queremos crer, um salto de anão, um fósforo aceso no meio do desespero colectivo.

O nosso problema é que o poder é uma sereia que canta tanto melhor e mais alto quanto mais gorda e acumulada está, e por isso é que o reformismo não funciona (a tia Rosa explica e ensina); o deles é que nós, a plebe, somos como o Anteu dos gregos antigos, quanto mais nos atiram ao chão, mais rijos nos reerguemos.

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