Come, filho, que é o que nos aguenta

Tenho-te no peito mas o céu estridente surge em nova vaga, e não dá tréguas. Penso agora na tua mãe, em casa, cuidando de ti; de nós. Há tanto tempo que não somos um só...

Foto
Ibraheem Abu Mustafa/Reuters

Tenho-te no peito e procuro o pão que me pediste, filho, por entre as estrelas que caem, estridentes. Mas escondo-me, por enquanto, no pó da guerra; aguardo o céu que ainda abafa.

Já ontem aqui estive, com o mesmo propósito. Partilhei os escombros com dois amigos. Ele, pai, amigo de longa data. Tinha o hábito de falar da mulher; e de mulheres. Falou-me também da guerra, com esgares de revolta, que era já tempo; não o segui. O filho, ainda criança mas um pouco mais velho que tu, trazia já olhos de guerra. Ainda ontem, ao acordar, mo recordaste como amigo ímpar, e sonhaste como voltariam a aprender o mundo, os dois, quando tudo terminasse; contei-lhe e os seus grandes olhos abrilhantaram-se.

Pai e filho andavam ao pão, e traziam-no já. No entanto, não pareciam tomar o caminho de casa. Perguntei ao pai porque não deixava o filho em casa. Respondeu-me, revolto: qual casa? E o olhar amargurado que o teu amigo já trazia, vestiu-se de água pela memória da mãe que lá ficou, nesse lar que já não o era. Foi numa tarde como esta, disse, que o céu estridente as escolheu; a casa e a mãe. Andavam agora só os dois, já de pão na mão, procurando algo; mas não o lar.

Então, o som estridente que escolhe sempre alguém não perdoou. Ontem não fui eu; mas foram eles. Mal recomposto da surdez momentânea, fui encontrá-los já inertes, envoltos no pó da guerra; apenas o filho gemia, ainda em agonia. Nada pude senão abraçá-lo, e ele, da imortalidade da sua infância, estendeu-me um embrulho: “É para ele...”; para ti, disse. Mais não procurei; carregava agora o embrulho de duas vidas que recordarei com a saudade que se deve a uma dívida de sangue. Voltei assim para junto de ti e da tua mãe, para casa.

Quando me viste, não fui capaz de esconder o olhar de morte, que sei já não ser novidade para ti. Tu percebeste, e não evitaste a incompreensão. “Come, filho, que é o que nos aguenta”, disse, escondendo-te a origem do pão que te oferecia. Não seria justo impor-te memória tão dura; tão tenra ainda a idade. Desolado, lavei do rosto o pó da guerra, e da dor a água salgada. Confortei-me nos teus braços, e nos da tua mãe. Dormimos os três juntos, mas não sonhámos; apenas tememos.

Hoje aqui estou, de novo, em busca do pão; acantonado. Tenho-te no peito mas o céu estridente surge em nova vaga, e não dá tréguas. Penso agora na tua mãe, em casa, cuidando de ti; de nós. Há tanto tempo que não somos um só... Há tanto tempo que o tempo não nos permite ser mais do que pais... Somos, os três, apenas sobreviventes do infortúnio. Mas hoje vou feliz. Levo comigo um pião, como os que usava em pequeno, para que brinques, inocente; espero que gostes.

São já horas; mas não ainda. Sei que me esperas em casa mas só agora retorno. O pão não é fresco mas embrulho-o, juntamente com o pião da tua felicidade futura. Tenho-te no peito e acelero o passo; mas não posso. Preciso de aguardar o céu, estridente; acalmo.

Não, tenho de tentar... Vou agora... Talvez consiga...

Sugerir correcção
Comentar