Pescadinha de rabo na boca: banqueiros e médicos, os vilões do dia

E em plena "sleepy/silly season", o português de corpo dorido esticado uns dias na areia, lagarto ao sol e cérebro mole, vislumbra no horizonte um cargueiro chamado BES afundar com a rapidez de uma cruz na batalha naval

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Hugo Correia/Reuters

Interessante sequência de primeiras páginas no escaparate da banca de jornais diários, esta quinta-feira, 7 de Agosto.

Lado a lado, letras gordas, os criminosos, cúmplices nessa proximidade intimista das notícias de capa.

Parceiros de prateleira: "Depósitos da Família Espírito Santo ficam no Bes mau", "Salgado esconde fortuna na Ásia", "Redes criminosas de apostas ilegais no futebol português", "Médicos duplicam salário".

Frases que infiltram o subconsciente da opinião pública, ondas de peças de dominó com queda da reputação em cadeia, bando de gatunos oportunistas, povo agastado confundido, angústia dos dias em crescendo, afinal até os médicos duplicam os salários, só o zé-povinho fica a ver navios rumo a "off shores".

Que importa depois o artigo em profundidade? No caso concreto, refere-se a uma auditoria do Tribunal de Contas sobre diferentes modelos de Unidades de Saúde Familiar, tema de grande complexidade, que envolve colegas de Medicina Geral e Familiar (MGF), e sob o qual como pediatra não me vou alongar porque não me compete formular opinião sobre essas matérias, por não estar suficientemente informada.

E se nem eu me considero apta para abordar o tema, embora depois de ler a primeira página e o artigo na totalidade entenda que o assunto de base é financeiro, e os tais valores remuneratórios elevados são casos pontuais (e suados para serem recebidos), pois conheço vários colegas de MGF, o que dizer do cidadão comum, temporariamente cego por nuvem de gás pimenta, amblíope para o real escândalo destes dias, a corrupção bancária? E com a maior isenção, não é verdade que entre grandes rebanhos de ovelhas brancas existem sempre algumas negras?

Reconheço a minha absoluta ignorância em economia, não sou comentadora política de palavreado hábil, "connaisseur" de bastidores obscuros e passagens secretas para encontros entre quem decide o futuro de um país.

Sou apenas uma espécie de copo meio cheio de "Absolute Vodka": ténue estado de embriaguez pelas imagens de um país desmantelado, a que assisto não só nas notícias mas também no meu dia-a-dia profissional.

Na minha visão simplista, o estouro do BES levou por arrastão parte da oferenda no altar dos sacrifícios do povo lusitano, o cérebro centrifugado e lavado com lixívia pura, e após sessão de transe colectiva convencido da culpa de ter vivido acima das suas possibilidades. Esse povo penitenciou-se durante dois anos, auto flagelou-se, as respectivas famílias fustigadas pela crise, ventania de euros que voaram das contas dos cidadãos.

A Troika, terminado o serviço de faxina e verificado o brilho da tijoleira, tirada fotografia de praxe com os nossos governantes, zarpou de férias para paraísos tropicais, os respectivos países europeus nossos parceiros com o seu quinhão de lucro pela saída limpa.

E em plena "sleepy/silly season", o português de corpo dorido esticado uns dias na areia, lagarto ao sol e cérebro mole, vislumbra no horizonte um cargueiro chamado BES afundar com a rapidez de uma cruz na batalha naval.

E vê ao longe, sentado na toalha de praia coçada, os respectivos almirantes das frotas dos partidos a contarem munições e delinearem estratégias, a oposição radiante pela oportunidade à vista de subir ao pódio, e os que mandam a sublinhar que não foram utilizados capitais públicos nem privados para a cirurgia plástica do BES, agora denominado Banco Novo, talvez mais ecológico se intitulado de Banco Reciclado...Serão capitais oriundos de outros planetas, de alienígenas?

Mas o algodão não engana, e a saída limpa afinal estava inquinada.

Por isso é conveniente agora distrair de novo os portugueses, apontando o dedo a outras classes, como a classe médica.

E o efeito pode ser de tal forma perverso, que não só atira fuligem sobre os médicos que trabalham no SNS (sobre os quais versa a notícia), como atrai "clientela" (palavra feia, para mim não são nem clientes nem utentes mas pessoas ou doentes, e é assim que falamos entre nós, no nosso grupo dos Médicos Unidos da rede social, que inclui 25% dos médicos), para a medicina privada gerida pelos grandes grupos bancários… Pescadinha de rabo na boca.

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