“Mamading”, o jogo no qual se troca sexo oral por bebidas

Jogo que oferece bebidas alcoólicas em troca de sexo oral pode estar a estender-se de forma “vertiginosa” a outros locais. A polícia de Maiorca está no terreno. O P3 falou com investigadores sobre o fenómeno: o “mamading” diz alguma coisa sobre a sociedade actual?

Sergio Azenha
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Rita Salomé Esteves
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Sexo oral em troca de bebidas alcoólicas gratuitas. O fenómeno — já conhecido como “mamading” — estourou nas redes sociais e nos meios de comunicação social no início do mês, com a revelação de um vídeo feito com um telemóvel no qual uma jovem britânica aparece numa discoteca de Maiorca a fazer sexo oral a 24 homens em dois minutos e meio. A polícia espanhola está a investigar o caso, sob a pressão de notícias que afirmam que a prática está a estender-se a outros locais de forma “vertiginosa”.

O alegado jogo sexual desencadeou um sem fim de comentários online: insultos pesados à jovem britânica, perplexidade, observações xenófobas, dedos apontados aos jovens em geral e às mulheres em particular. A autarquia local já aprovou uma lei para apertar o cerco aos organizadores de “pub crawl” [uma espécie de ronda por vários bares] e o Instituto da Mulher espanhol fala de “incitação à prostituição” e quer uma intervenção do Ministério Público. Pode este fenómeno ser um reflexo da forma como encaramos a sexualidade? O que diz o “mamading” sobre os jovens e sobre a nossa sociedade?

O parecer não é consensual. Voz à socióloga Ana Cristina Santos: “Este fenómeno não diz absolutamente nada acerca da sexualidade de ninguém, diz apenas sobre aquelas pessoas naquele momento e tem de ser entendido da forma circunscrita como ocorreu.” Não é essa a opinião de Júlio Machado Vaz: “O que há ali é a aceitação de um comportamento de submissão de uma jovem para ser recompensada com algo. É uma visão funcional do sexo, através do qual se consegue algo que se quer. Isto é hiper-banalização do sexo.” Para o psiquiatra “é evidente que em termos de banalização [do sexo] temos vindo sempre a crescer”. “Isto é um julgamento moral, admito. Mas numa sociedade de consumo o sexo é uma moeda de troca, já acontecia há 20 anos, o sexo funcional não apareceu o ano passado, mas tem vindo a crescer”, acredita.

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Fenómeno está a acontecer em pelo menos dois bares de Magaluf, em Maiorca Hugo Delgado

São “extrapolações” que Ana Cristina Santos se recusa a fazer, chamando a atenção para o facto de este acontecimento ser “o pretexto ideal para uma série de comparações grosseiras”. “É claro que este fenómeno tem contornos que merecem a nossa preocupação — se há segurança ou não, se foi coagida. Não estamos a dizer que é positivo, estamos a dizer que há diferença entre moral individual e direitos universais.”

Desigualdades de género

Para a psicóloga Joana Almeida este caso é um reflexo de como a “educação para a igualdade de género” está longe de ser perfeita: “É mais um exemplo de como as desigualdades entre géneros e como educação diferente coloca as raparigas muitas vezes numa situação de manipulação e exploração, de entrarem em jogos em que servem o prazer dos outros”.

As instituições e autoridades espanholas têm acompanhado o caso com preocupação. “O Instituto da Mulher considera que a prática é degradante para as mulheres e que atenta contra a sua dignidade. Estamos a preparar um relatório para averiguar em que medida estes actos poderiam ser considerados ilegais e, com isso, pedir uma actuação dos poderes públicos”, disse ao P3 a directora desta instituição, Carmen Plaza, que acredita que a prática possa constituir um caso de “incitação à prostituição”. “Preocupa-nos que estas mulheres sejam usadas como publicidade para uma prática vexatória e degradante. Ao fim e ao cabo trata-se de uma forma de atrair clientela para ter lucro económico através das mulheres.”

O jogo sexual — que segundo o Instituto da Mulher acontece em pelo menos dois bares de Magaluf — funciona da seguinte forma: as raparigas devem fazer sexo oral a um número pré-determinado de homens no mais curto espaço de tempo possível. Quem o fizer mais rapidamente ganha aquilo a que as discotecas chamam de “holiday”, um passe ilimitado de direito a bebidas alcoólicas, válido durante todas as férias.

É possível que o evento de Maiorca não tenha sido o primeiro do género. No início do mês de Junho, uma discoteca de Barcelona organizou aquilo a que chamava um “concurso de mamadas” com prémios para quem fizesse o melhor felácio a um desconhecido. O vencedor deste concurso ganhava um prémio de 500 euros, enquanto o segundo classificado tinha direito a uma viagem para duas pessoas a Ibiza e o terceiro com DVD de pornografia e um vibrador. Semelhanças com o caso maiorquino, questionou o diário espanhol La Vanguardia, que trouxe o caso a público? Não existem, argumentam os responsáveis da discoteca The Black Room. Esta nem sequer foi a primeira festa do género organizada por este estabelecimento: “Fizeram-se muitas, algumas sobre quem tem o pénis maior ou mais pequeno. (…) Estas pessoas fazem isto voluntariamente”, admitiu um dos responsáveis da discoteca, que não percebe a razão para o escândalo à volta do assunto: “Surpreende-me que no festival erótico de Barcelona, diante de quatro mil pessoas, haja uma actriz que tem sexo com 20 tipos e não haja qualquer problema e com isto sim.”

Depois do vídeo de Magaluf ter sido notícia, no início do mês, no Diário de Maiorca, o autarca de Cálvia (onde fica Magaluf), Manuel Onieva, expressou a sua “rejeição absoluta” por este locais chamados de “bares-mamading” e ordenou a abertura de uma investigação policial. “Não se descarta o encerramento destes ‘bares-mamading’ se depois da investigação que estamos a fazer se demonstrar que houve infracções graves à lei. Também é preciso averiguar se há sanções a aplicar. Tudo depende do que concluirmos. O primeiro passo é perceber exactamente o que se passou e onde”, disse ao jornal espanhol ABC um porta-voz da autarquia local. “Certo é que estes bares não têm licença como bares de alterne e com esse facto já estamos perante a primeira infracção importante. Veremos onde chegamos depois da investigação.”

Controlo vai apertar

Esta quinta-feira, dia 10, Manuel Onieva anunciou a aprovação de uma lei que dá “maior controlo sobre os organizadores de 'pub crawl'". É que a jovem de 18 anos que aparece no vídeo estaria a participar num evento da empresa Carnage Magalluf, que se descreve no site como o “líder no entretenimento em Magaluf” e que, numa conferência de imprensa, se recusou a assumir qualquer responsabilidade pelo caso: “Não fui eu quem forçou a rapariga a ficar no chão. Não vou pedir desculpa à família, lamento. Não tenho responsabilidade moral sobre isto”, disse o director Paul Smith, citado pelo “The Mirror”.

Para Cristina Santos é preciso recentrar a discussão. O ponto de partida para a análise deste acontecimento não deve ter epicentro na jovem britânica, mas antes em dois pontos fundamentais: se houve ou não coacção (psicológica, física, simbólica...) e se as pessoas que são filmadas cederam direitos de imagem. “Espero que a investigação se centre nestes dois aspectos”, comenta em conversa telefónica.

Tudo o resto é aproveitar a situação para “um reflorescimento de um pânico profundamente sexista, moralista e puritano”. “Vivemos num contexto, em termos gerais, de um sistema patriarcal, sexista, que associa a sexualidade ao contexto conjugal, de uma relação estável, de preferência com fins reprodutivos. Este evento desafia tudo isto”, sugere, colocando em cima da mesa a hipótese de a rapariga querer apenas ter uma relação sexual sem nenhum compromisso: “Nesse sentido não podemos ter outra atitude que não a de respeito.”

Júlio Machado Vaz também não duvida que a “sociedade sexista” está escancarada neste fenómeno. “É óbvio. Basta ver os comentários e perceber que acham que ela se rebaixou e os tipos tiveram a sorte grande. Se houvesse igualdade entre sexos o que se esperaria era que o primeiro ou segundo homem não quisesse participar no jogo”, argumenta.

Responsabilidades relativamente ao possível crescimento deste tipo de comportamentos? “Os jovens são reflexo dos adultos”, responde Joana Almeida. “Com tanta conquista de direitos de igualdade ao longo dos anos, [este caso] deixa-me triste.”

Há, no entanto, algo que falha na formação da jovem britânica, acredita o psiquiatra: “Seguramente alguém que se rebaixa a este ponto foi alguém que não teve ou não foi capaz de absorver valores de dignidade, nem sequer são sexuais. É alguém que não consegue fazer com que os outros a respeitem e que não se respeita.”

A socióloga do Centro de Estudos Sociais de Coimbra, Ana Cristina Santos, recusa analisar o assunto por essa perspectiva. “O que me causa perplexidade é a reacção a este evento e não o evento. Em nenhum momento vi um comentário a pensar na segurança desta mulher, sobre o que terá acontecido depois de participar nesta actividade. Ela não é ouvida e é vista como um objecto”, lamenta, recordando as profundas marcas psicológicas que um evento deste género pode deixar numa jovem: “Quando uma pessoa é objecto de tanta crítica acaba por as assumir como verdadeiras e incorporá-las na sua identidade. Acha que não tem saída.” A psicóloga Joana Almeida acredita que as consequências dependem das “fragilidades emocionais” já existentes. “No futuro pode ser uma arma contra ela e ter consequências para a auto-estima”, acrescenta. 

Este caso, conclui a socióloga Ana Cristina Santos, deve pôr-nos a pensar sobre assuntos que foram quase totalmente ignorados nas notícias que circularam nos últimos dias e nos comentários online, como “a célebre ausência de educação sexual” ou “a menorização destes temas em meio familiar”.

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