O pequeno mundo da primeira-dama

Estou de acordo que a emigração sempre aconteceu mesmo sem crise. Tanto que até me vou juntar a si e brincar às tautologias demagógicas: a morte sempre existiu mesmo sem saúde “gratuita” do Estado Social — e não é por isso que vamos agora acabar com a medicina

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Hindrik Sijens/Flickr

Exma primeira-dama,

Não nos conhecemos mas ainda assim permita-me que a inquira sobre recentes declarações suas, em que defendeu que "mesmo sem crise" sempre houve emigração de portugueses, o mundo actual "encolheu" e hoje há oportunidades em todo o lado.

Estou de acordo que a emigração sempre aconteceu mesmo sem crise. Tanto que até me vou juntar a si e brincar às tautologias demagógicas: a morte sempre existiu mesmo sem saúde “gratuita” do Estado Social — e não é por isso que vamos agora acabar com a medicina; o roubo sempre aconteceu mesmo sem o ladrão ter fome — e não é por isso que vamos agora deixar à solta quem deu cabo dos bancos em Portugal. Err, hum, com esta fiquei confuso, confesso.

Eu diria que quem emigra fora de tempos de crise emigra porque quer. Não porque não tem outra hipótese. É esta pequena diferença que escapa à sua extrema sensibilidade social: ter ou não ter outra hipótese.

Mas eu compreendo as suas declarações. Segundo li, o governo veio agora exigir que os “colaboradores” do Estado “devem abster-se de emitir declarações públicas [que] possam pôr em causa a imagem” do Estado. A senhora está apenas a garantir o emprego do seu marido, de modo a que ele não tenha de ir por esse mundo de oportunidades fora ganhar a vida — isto apesar de o seu Aníbal ter escolhido receber a sua reforma em desfavor do seu ordenado como PR (numa grande demonstração de sentido de estado).

O medo induzido pela nova e democrática norma do nosso governo explica a mensagem que o seu marido deixou no Facebook: “Aqueles que falavam em segundo resgate o que é que têm a dizer agora?”, escreveu o PR. Permita-me dar dois exemplos de pessoas que falaram em segundo resgate: tanto Pedro Passos Coelho e Aníbal Cavaco Silva disseram que este era possível. O que é que têm a dizer agora? Bem sei, bem sei: que o problema o da dívida pública (provocado, diziam, pelo consumo dos portugueses — consumo esse a que o seu marido apelou quando era PM) está resolvido. Deve estar: antes da Troika a dívida pública era de 90%; agora é de 131%.

O seu Aníbal disse até que Portugal devia ter um programa cautelar e que era inevitável a espiral recessiva. É impressionante como o seu marido consegue estar sempre do lado certo da história — basta-lhe mudar de opinião quando lhe dá jeito. Tem, aliás, uma grande tradição nisso: está sempre a dizer que não é político e é o político no activo mais antigo em Portugal; em 2010 disse que “os portugueses atingiram o limite dos sacrifícios” e pediu “um sobressalto cívico”; passados dois anos afirmou que “não se deve explorar politicamente a ansiedade e a inquietação dos nossos cidadãos”, e defendeu os sacrifícios em nome de uma boa causa. Pilatos não ficou sem herdeiros.

Voltando à China, cujo respeito pelos direitos humanos certamente admirará, tanta foi a vontade que demonstrou de que os dois países cooperassem mais: “Vejo sempre a abertura ao mundo como um mundo de oportunidades”, disse a senhora.

Esse “sempre” é dúbio. Uma coisa é pegar numa carteira recheada antes de sair de casa, abrir a porta, e comprar um bilhete de avião; outra é ser posto fora de casa sem tusto no bolso, fecharem-nos a porta e dizerem “Agora amanha-te”.

Onde a senhora vê um mundo de oportunidades, eu vejo uma pátria de porta fechada e uma horda de sem-abrigo. Mas é provável que eu esteja errado e a razão se aninhe junto de si: se a senhora tiver aprendido alguma coisa com o seu marido, também estará sempre do lado certo da história. Já nós, os despatriados cheios de oportunidades pelo mundo fora, estamos há muito do lado errado.

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