E este ano as 12 passas vão para…

Se a vida vai mesmo acabar no dia 31 (é a única explicação que encontro para passarmos a ser pessoas absurdamente corajosas no dia seguinte), não devíamos fazer antes um testamento?

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Catarina Sanches

Está a chegar a altura do ano em que se faz contas à vida. Contam-se as moedas para os centros comerciais que se atafulham de pessoas aos encontrões e faz-se o balanço do ano que tem já a morte anunciada. Mas há algo que me intriga nesta altura do ano: aquela súbita revelação que acontece a todos de que a vida vai acabar. E, a acompanhar, surge um génio da lâmpada a anunciar que “Agora é que é!”.

Aceitas o desafio, pegas na tua Bic velhinha (agora é no “tablet”, não é?), escrevinhas listas de desejos e traças novas metas a cumprir. Na linha do horizonte, um mago segura uma fita que vai ser cortada às 00h00 do dia 31 de Dezembro, assinalando que é a partir desse momento que vais conseguir deixar de fumar ou admitir que gostas daquele tipo giro que trabalha ao teu lado.

Ora, não entendo. Se a vida vai mesmo acabar no dia 31 (é a única explicação que encontro para passarmos a ser pessoas absurdamente corajosas no dia seguinte), não devíamos fazer antes um testamento? Se não vejamos, um testamento tem por base duas coisas: uma é a de pensarmos sobre tudo o que andámos a acumular e eventualmente reflectirmos sobre o seu significado. A outra é a que nos obriga a parar para pensar, de facto, naqueles que contribuem para encher as caixinhas de felicidade do nosso dia-a-dia, todos os dias.

Imagina que eu agora te pergunto quem são as três pessoas mais importantes da tua vida e, para essas três pessoas, te peço para enumerares as três coisas que as faz sorrir espontaneamente. Tens a resposta na ponta da língua? Tens pensado o suficiente na felicidade delas ou isso só é relevante na véspera dos dias de aniversário, na altura do burburinho do Natal ou nos típicos dias menos bons?

Desafio-te a pensares, hoje, no livro de receitas da tua avó que guardas junto aos livros antigos da faculdade. Sim, aquele que tem a receita da torta de laranja que a Margarida adora! E naquele vinil do Bob Dylan que já nem ouves tanto assim porque agora usas sempre o iPhone. O João sempre to pediu emprestado e, bem vistas as coisas, não há ninguém com uma colecção tão extensa de clássicos como ele. E, já agora, lembra-te também do livro do Calvin & Hobbes com o qual o Fernando tanto se delicia sempre que te visita.

Não que tenhas de te desfazer das tuas coisas, mas onde quero chegar é que isto de redigir um testamento é uma espécie de elogio à amizade que não devia ser feito quando já não temos muito tempo para honrarmos os nossos amigos. Se é para nascermos outra vez no primeiro dia do ano, prontos a agarrar a felicidade com unhas e dentes, não vejo melhor forma de encararmos essa nova vida do que sabendo exactamente o que fazer para preservar aqueles cuja existência vale mais do que a meta dos não sei quantos quilos a menos em 2014.

É como se ao estarmos a fazer um testamento estejamos, em simultâneo, a reconhecer os gostos e as peculiaridades daqueles que nos são próximos, que marcaram o ano que passou e que certamente queremos que continuem lá no ano que há-de vir. Haverá desejo mais nobre?

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