Os bons vi sempre passar no mundo graves tormentos

Neste mundo, é muito mais perigoso ser-se bom (querer o bem dos outros) do que ser-se mau (e vencer à custa da dor alheia)

Foto
Adrees Latif/Reuters

O título desta crónica é o primeiro verso de um poema de Camões, que aprendi na escola, intitulado “Ao desconcerto do mundo”. É um poema que sempre me causou inquietação e esta frase inaugural é lapidar (quantos mais anos passam, mais fico ciente da sua veracidade). A inquietação que sinto tem especialmente a ver com isto: Camões constatou-o e disse-o, no séc. XVI, e hoje, infelizmente, pouco mudou. No seu tempo, a história da humanidade já lhe permitia proferir tal sentença. O pior é que a sentença parece perpétua…

Que dizer dos tormentos por que Nelson Mandela passou, apenas porque combatia um sistema iníquo e defendia outro, onde brancos e negros tivessem os mesmos direitos? A recompensa foram 28 anos enfiado em celas. Ou Martin Luther King, que já tinha feito o mesmo nos EUA, e que foi, cobardemente, assassinado num motel? John Lennon limitava-se a cantar o amor, a fraternidade e a paz (imagine-se…). Um louco qualquer matou-o (mas porque será que os loucos, desde a Noruega até aos EUA, nunca matam os ditadores, os abusadores ou os pregadores do mal mas sempre os bons e os líricos?). John Fitzgerald Kennedy defendia uns E.U.A. menos “falcão”. Várias balas vindas de longe tiraram-lhe as ideias. A adolescente Malala apenas quer uma caneta e um professor para tornar o mundo melhor. Os talibãs quiseram que ela nada mudasse. Enfiaram balas no corpo da rapariga (mas ela não morreu). Salvador Allende foi eleito por um povo que queria um Chile mais justo e igual. Um general não concordou. Mandou exterminá-lo. Allende não deixou (matou-se antes).

Estes serão apenas alguns dos mais notórios casos de seres humanos que lutaram por um mundo melhor, na direcção da fraternidade. Muitos outros lutaram, ou continuam a lutar (com palavras, armas ou actos), para que todos possamos ser mais iguais, tenhamos mais direitos e para que a felicidade seja mais possível. Em resultado disso, são presos, torturados, assassinados, perseguidos. Enfim, seres humanos que muitas vezes apenas proclamam a bondade e o respeito mútuo (e criticaram a exploração, a escravatura ou a discriminação) e têm como paga o castigo de outros, que vêem nestes emissários do bem uma ameaça à perpetuação do seu poder, da sua maldade. E o maniqueísmo, só aqui, é apropriado: como pode deixar Mandela de ter sido um homem bom e Pinochet um homem mau?

Neste mundo, paradoxalmente, é muito mais perigoso ser-se bom (querer o bem dos outros) do que ser-se mau (e vencer à custa da dor alheia). É mais perigoso pregar a paz e a harmonia entre as gentes do que proclamar o ódio, o medo ou a discriminação.

E não há justiça divina ou carma que compensem a dor ou a morte dos bons às mãos da cobiça dos maus. É que, como Camões continua, os maus vemos sempre nadar em mar de contentamentos.

Sugerir correcção
Comentar