Um encontro de Passos Coelho com Kafka

O primeiro-ministro falha ao não conseguir tomar medidas mais humanas e em não conseguir justificar devidamente as suas escolhas. Esta desumanização e incapacidade pode-lhe custar caro, ou seja, o fim do processo governativo

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Enric Vives Rubio/Público

Estas três obras são, possivelmente, as mais influentes da herança de Franz Kafka: “O Castelo” , “Metamorfose” e “O Processo” (“Amerika” também pode entrar neste leque). Será a partir destas que far-se-á uma analogia ou um pequeno ponto de contacto com o actual governo português, sendo Passos Coelho o rosto, incidindo nas manifestações de poder que escondem toda a impotência humana e o ridículo do ser humano em situações que, efectivamente, acontecem. 

Em “O Castelo”, tudo começa com a personagem chamada de K., o agrimensor, que parte para uma aldeia para trabalhar. No entanto, quando procura encontrar o seu lugar, quer como trabalhador, quer como parte integrante da sociedade, esbarra, constantemente, nas várias atitudes das pessoas e nos impasses burocráticos. Claro que, nos três livros escolhidos — e como grande parte da obra de Kafka —, as personagens são seres ingénuos, puros, que colidem com o cinismo e a esperteza saloia, e, assim, compreender-se-á que Passos Coelho leve alguma vantagem. Ora, certo dia, o primeiro-ministro também esbarrou com um castelo, e esse castelo é o da “Troika”, no qual Mário Draghi, pelo Banco Central Europeu (BCE), e os vários representantes do FMI, conduzem a vários dilemas burocráticos e espezinhadores. Relembro, também, que K. se havia relacionado com a desequilibrada Frieda. A Frieda de Passos Coelho é, claramente, Paulo Portas. Porquê? Porque também a relação de ambos é feita de desequilíbrios, de recuos maiores e de avanços menores. Outra semelhança há entre ambos: Frieda, apesar de ser amante do chefe da estalagem e se envolver com K., era soberbamente respeitada. Meia palavra para bom entender basta, não é? 

A obra “Metamorfose” é uma das mais conhecidas pelos amantes da literatura. Nesta, a personagem principal, GregorSamsa, um caixeiro-viajante, transforma-se num insecto, de um dia para o outro. Toda a sociedade, incluindo a própria família, despreza-o pela sua nova forma. Bom, o primeiro-ministro também tem estas transformações, porém as suas mostram-se mais recorrentes, dado que este é neo-liberal quando interessa privatizar empresas e livrar-se de despesas e, noutra face, a sua transformação é de um fanático em volta de uma máxima intervenção do Estado no corte das despesas públicas (pensões, impostos, etc.) e na concessão de monopólios (acrescentava aqui a palavra autarcia como uma ilusão). Tal como Gregor, este é odiado por aqueles que o rodeiam e a sua família — atenção, aqui família é família política — também já o começa a desprezar. Por fim, a morte de Gregor trouxe a felicidade e a libertação à sua família (para que não haja uma possível confusão, a metáfora aqui é evidenciar, sempre, um fim de governação e não a morte de alguém).

Finalmente, a terceira e última, “O Processo”. Mais uma vez, a figura central é K. e este vai entrar numa grande luta para defender a sua inocência e dignidade. Como é previsível, a analogia centrar-se no embate entre o líder do governo português e o Tribunal Constitucional e, até, no distanciamento com o seu povo, o povo português. O primeiro-ministro falha ao não conseguir tomar medidas mais humanas e em não conseguir justificar devidamente as suas escolhas. Esta desumanização e incapacidade pode-lhe custar caro, ou seja, o fim do processo governativo.

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