Os homens de gelo

Néle Azevedo contrapõe as suas obras aos grandes monumentos que habitam as praças e jardins das cidades, confrontando a pequenez e efemeridade dos seus Melting Men com a grandiosidade e durabilidade daqueles

Foto
DR

Há uns anos, era possível que um habitante de Havana, Tóquio, Quioto ou São Paulo, caminhando apressado pela cidade, a pensar nas suas preocupações, se deparasse subitamente com uma pequena figura humana feita em gelo, estrategicamente colocada num local recôndito da rua onde passava. O que pensaria essa pessoa do achado?

Só Néle Azevedo, a artista brasileira responsável por estas esculturas o saberá, visto que estas foram as experiências que fez antes de lançar o projeto de arte urbana Monumento Mínimo, que a tornou famosa. Segundo a própria relata, Néle levava estas figuras num saco térmico e espalhava-as por vários locais das cidades, afastando-se depois para observar a indiferença, raramente, a curiosidade, muitas vezes, as emoções intensas, por vezes, que a figura pequena e frágil, a derreter-se sob o sol impiedoso, desencadeava junto dos transeuntes.

Depois dessas experiências, a artista começou a realizar grandes instalações na Alemanha, no Japão, em Cuba, no Chile, em França, na Irlanda, no Brasil e noutros países, por vezes para alertar para as alterações climáticas, por vezes com fins puramente artísticos, em que centenas destas pequenas figuras eram aglomeradas em praças, derretendo gota a gota durante os seus trinta minutos de existência, e confrontando a multidão que passava, parava e olhava, com a sua individualidade, com as suas semelhanças, com a sua própria transitoriedade no mundo.

Néle Azevedo contrapõe as suas obras aos grandes monumentos que habitam as praças e jardins das cidades, confrontando a pequenez e efemeridade dos seus Melting Men com a grandiosidade e durabilidade daqueles, com o intuito de opor o anonimato aos heróis da história oficial, o movimento do líquido à imobilidade do bronze ou da pedra, a efemeridade da vida à eternidade da morte.

Com a sua obra, e o impacto emocional e social que tem, demonstra, na prática, a força da sociedade líquida, a ideia, defendida pelo sociólogo polaco Zygmunt Bauman, de que hoje vivemos numa era em que tudo está em constante fluxo e transição, onde já não há lugar para as ideias, os valores e os monumentos imutáveis, mas apenas para os pequenos momentos, para os pequenos afectos e para os pequenos homens de Néle Azevedo, que terminam a sua curta vida como pequenas manchas escuras no betão.

Sugerir correcção
Comentar