Cada regresso a casa

Voltei aos lugares e às pessoas. Fechei portas que tinha deixado entreabertas, mais por descuido ou incúria do que por outra coisa. Sentei-me à mesa com a namorada da partida e pedi-lhe desculpa

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EnidYu/Flickr

Lembro-me da primeira vez que voltei a Portugal, depois de ter emigrado para Angola. Recordo-me de sobrevoar Lisboa de madrugada e surpreender-me com as ruas organizadas e iluminadas. Não me esqueço dos meus pais, no aeroporto, à minha espera. E da Diana, uma amiga de há muito tempo, que também lá estava, apesar da hora matinal. 


Lembro-me de ter voltado a fazer o caminho até ao Seixal e de, durante os vinte minutos da viagem, àquela hora sem trânsito, sentir o desconforto e a inquietação de uma estreia.


Voltei aos lugares e às pessoas. Fechei portas que tinha deixado entreabertas, mais por descuido ou incúria do que por outra coisa. Sentei-me à mesa com a namorada da partida e pedi-lhe desculpa por ter sido um idiota (e não me esqueço da lição que levei).


Foram duas semanas intensas, de abraços e histórias repetidas. Da primeira vez, toda a gente quis saber como era, o que se faz, como se vive e o que se come. E o calor? Muito. E as praias? Magnificas. E os preços? Caros. Respondi e voltei a responder. A dada altura já sem me ouvir.


Depois, a cada regresso a casa, o interesse foi desaparecendo. Afinal, não fui para fora, estou lá. E apesar de haver quem continue a achar que, agora em Cabo Verde, tenho tigres e girafas à porta da cubata, de uma maneira geral, o interesse pela experiência emigrante resulta da curiosidade de quem procura uma alternativa pessoal, e não da vontade de saber o que é que ando a fazer lá longe.


Comigo, sair de Portugal coincidiu com deixar a casa dos meus pais. No meu quarto — que na maior parte do tempo passou a ser para as visitas – mudou a cama, já não há beliche, mas no essencial continua tudo na mesma: os livros nas estantes, a pequena colecção de gatos de madeira, a televisão e os CD que raramente ouvi (nunca fui uma pessoa muito musical), também o guarda-fatos e as roupas de inverno fora de moda.


Entrar no quarto que antes habitávamos é um regresso a um passado que aparenta ser imutável, como se o tempo tivesse parado no momento em que o abandonámos.


Mas as coisas mudaram. As coisas e nós (e as coisas em nós). Mudou a forma como olhamos Portugal, os portugueses e o mundo, tanto como é diferente a forma como somos olhados. Há quem nos admire pela coragem — que às vezes foi apenas inevitabilidade — e há quem nos despreze pelo mesmo motivo. E mesmo a casa já não é tão nossa.


Por mais que nos perguntem, por mais que queiram saber, e por melhor e mais pacientemente que respondamos a todas as perguntas, nunca saberemos explicar por palavras, arrumadas em frases coerentes, que o principal da experiência não cabe na razão.


Encontrei, ainda assim, um verbo ao qual recorro sempre que me canso de tentar ser lógico: relativizar. A percepção de que tudo é efémero, de que não há culturas e povos melhores, da mesma forma que, tirando o essencial, não existe nada de tão importante que não consigamos dispensar. A minha vida mudou e eu mudei com ela. Para sempre.

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