“Ter ou Não Ter” (“To Have and Have Not”), de Howard Hawks (1944)

“Ter ou Não Ter” é um clássico dentro do seu género, com trunfos mais do que suficientes para poder ser apreciado como obra individual e autónoma. A sua semelhança com “Casablanca” é a única razão para alguma estranheza e desconforto

Fotogaleria
DR
Fotogaleria
DR

Vamos analisar “Ter ou Não Ter” a dois tempos: primeiro pelo que é, depois pelo que não é.

Quanto ao que é, é, logo para começar, uma aposta ganha por Howard Hawks, que tinha apostado com Ernest Hemingway, segundo se diz, que seria capaz de fazer um bom filme a partir do pior romance do escritor. Não há dúvida de que o conseguiu, se bem que alterando muito da história original. Os contributos de Jules Furthman e William Faulkner para o que viria ser o argumento final foram determinantes para o sucesso da longa-metragem, quer pela vivacidade dos diálogos, quer pelo tom mais ligeiro, mais lúdico e mais luminoso dado às tintas carregadas do conflito político de fundo presente nas páginas de Hemingway.

Exemplos disso mesmo são a relação entre o dono do barco de pesca Harry Morgan, a quem chamam “Steve” (Humphrey Bogart), um americano que ganha a vida a alugar o seu barco a turistas para pesca desportiva, na ilha da Martinica, e o seu ajudante beberrão incorrigível, mas benigno, Eddie (Walter Brennan). E, é claro, a aparição de Marie Browning, a quem “Steve” chama “Slim” (Lauren Bacall), um papel que criou instantaneamente uma estrela de cinema a partir de alguém que, até aí, era manequim de moda. Na realidade, o milagre deve-se a Howard Hawks, pelo forma como milimetricamente dirigiu a actriz na sua estreia e como estendeu o seu papel, inicialmente irrelevante, até com ele construir uma personagem-chave para o êxito da obra cinematográfica. Foi a sorte de Lauren Bacall e o azar de Dolores Moran, já que o protagonismo da primeira foi conseguido à custa da perda de importância da personagem interpretada pela segunda.

Foto

Sendo o tempo a Segunda Guerra Mundial e a Martinica uma possessão francesa, um grupo clandestino de resistentes à ocupação nazi da França tenta contratar “Steve” para ir buscar um tal Paul de Bursac (Walter Moran), elemento importante da Resistência procurado pelas autoridades locais, e a sua mulher, Hélène de Bursac (Dolores Moran), que “Steve” não aceita, para compor o seu quadro de individualista que não se compromete com ninguém nem com nenhuma causa. É a fase “I’ll stick my neck out for nobody”, que rapidamente muda quando ele e “Slim” são presos no café que frequentam pelo chefe da polícia, capitão Renard (Dan Seymour), e, levados para a esquadra, submetidos a interrogatório humilhante.

Há ainda tempo para conhecer “Frenchy”, o dono do café, e o pianista “Cricket” (Hoagy Carmichael), com o seu palito na boca, como um pianista de “saloon” num “western”, mas na Martinica, tocando e cantando “Hong Kong Blues”, acompanhando “Slim” no seu descaramento vocal. Mas após a cena do assobio, desculpa-se-lhe tudo.

Tudo muito bem feito, tudo muito interessante, tudo muito engraçado, não fosse dar-se o caso de Hawks, ao querer ganhar a sua aposta, talvez a todo o custo, parecer utilizar uma fórmula que tinha dado muito notáveis frutos dois anos antes, com um filmezinho chamado “Casablanca”. Estão lá o resistente antinazi e a esposa em fuga, a quem Humphrey Bogart tem de garantir protecção, está lá o pianista do café, tal como Sam, estão até figuras físicas semelhantes em papéis diferentes, como é o caso de Dan Seymour, que tenta substituir Sydney Greenstreet, mas quem consegue substituir Sydney Greenstreet? E, já agora, alguém consegue substituir Ingrid Bergman, mesmo que seja pelo mistério de Lauren Bacall e pelo físico de Dolores Moran? E Claude Rains? E Peter Lorre? E “As Time Goes By”?

“Ter ou Não Ter” é um clássico dentro do seu género, com trunfos mais do que suficientes para poder ser apreciado como obra individual e autónoma. A sua semelhança com “Casablanca” é a única razão para alguma estranheza e desconforto. Quem viu os dois sabe perfeitamente quem ganha e quem perde, mesmo que, uma vez, um deles tenha servido para ganhar uma aposta.

Sugerir correcção
Comentar