“Stalking”: um médico com um revólver a perseguir a estudante

Quando tinha 25 anos, Raquel foi vítima de assédio persistente do ex-namorado. Apresentou queixa na polícia e, olhando para trás, considera que uma lei "anti-stalking" faria diferença

Cartaz de uma campanha italiana
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European Parliament/Flickr
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Quando Jorge lhe apontou aquele revólver, Raquel (nomes fictícios) não queria acreditar. Como tinha chegado àquele ponto? "Se tu não és minha, não és de mais ninguém. Continuas com esse homem, e eu mato-te e mato-me a seguir." Será que ele estava a falar a sério ou queria apenas assustá-la? É certo que fora uma relação conturbada, mas tinham namorado durante três anos. Ele, do alto dos seus 40, médico, inteligente, culto; ela, estudante, mãe, com 25 anos. Não sabia o que fazer. Desatou aos gritos, a insultá-lo "do piorio". Resultou. O jogo invertera-se. Ele pousara a arma, apelava à calma; ela ia descendo as escadas, queria-o porta fora. Uma hora depois, conseguiu-o. Estava novamente sozinha em casa, tentava serenar. Uma certeza: "Eu nunca mais falo com este homem." 

Aconteceu há mais de 15 anos. Hoje, Raquel arrepende-se de ter acedido àquele encontro, de ter mencionado os problemas do seu computador. Terminara a relação há alguns meses, quando descobriu que Jorge tinha uma outra mulher, que, aliás, estava grávida. Durante uns tempos não se tinham falado, mas agora ele insistia numa amizade. Sabia que ela tinha um novo namorado. Já em casa dela, depois de ter arranjado o computador, confrontou-a. Às respostas evasivas, ele contra-atacou com a arma que tinha na pasta. Para surpresa dela. 

"Tu estás em casa, eu sei que estás"

Horas depois de Jorge ter saído, o telefone tocou insistentemente. Raquel não atendeu e as chamadas começaram a cair no atendedor. Era ele. Pedia desculpas, estava arrependido. Começou a ligar de hora a hora e, à medida que o tempo passava, os lamentos davam lugar a novas ameaças. "Tu estás em casa, eu sei que estás. Eu vou aí e agora mato-te."

No dia seguinte, Raquel estava em casa com o filho de seis anos. Jorge apareceu, bateu à porta. Silêncio. Pouco depois já estava aos pontapés na porta, a ameaçar colocar lá uma bomba. "Fiquei impotente. Não tinha coragem para ligar para a minha família... Liguei para a polícia." Foi enviado um carro patrulha e, depois de uma hora a vociferar cá fora, ele desistiu. Ela percebeu que tinha mesmo de assumir uma atitude. Ao contrário de Filipa, vítima de "ciberstalking", Raquel foi à polícia apresentar queixa. 

A polícia antes da família

De acordo com o estudo da Universidade do Minho que investigou o "stalking" em Portugal, as vítimas preferem recorrer a amigos, colegas e familiares do que às forças de segurança. "Pensei friamente. A família de nada ia valer naquela situação. Não dei oportunidade sequer que ele chegasse mais perto e encorajo todas as pessoas que estejam a passar por isto a recorrer à autoridade." Ainda assim, o ambiente que encontrou na esquadra não foi o mais fácil. "Não queriam acreditar", conta Raquel. "Demorei uma hora a convencê-los. Insisti que a minha integridade física estava a ser posta em causa."

O carro patrulha começou assim a passar várias vezes durante a noite à porta de casa de Raquel. Encontraram, algumas vezes, Jorge dentro do carro, parado. Não o abordaram. "Eles diziam que não podiam fazer nada, ele estava estacionado na via pública." Entretanto, Jorge começou a aparecer na escola de Raquel. Na primeira vez, perguntou a todos os colegas sobre o paradeiro dela. "Disseram-me que ele parecia tresloucado. Andava a dizer que eu era a mulher da vida dele." O posto da GNR local destacou um agente para a porta da escola. Mais uma vez, a legislação toldava-lhe os gestos. "O agente não podia fazer nada. Cada vez que ele aparecia, pedia-lhe a identificação." A escola do filho também foi um dos alvos. Jorge chegou a ser visto nas proximidades. 

"Comecei a ficar paranóica. Tinha medo que ele raptasse o meu filho. Andava assustadíssima. Limitou-me completamente a vida. Fazia só o trajecto casa-escola. Procurava vestígios de ele ter estado em minha casa, bombas. Não dormia. Estava sempre a ver se estava a ser perseguida."

Mudar a legislação

O caso foi parar a tribunal. Jorge recebeu uma intimação. Raquel deixou de o ver, mas soube depois que ele andava a ligar aos seus amigos. "Pedia para eu retirar a queixa." Arranjou duas testemunhas que tivessem presenciado as ameaças ("o que também é difícil porque normalmente os agressores não o fazem em público") e foi ouvida em tribunal. Tudo indicava que o médico iria ser acusado, até que o governo anunciou uma amnistia. O caso foi contemplado.

"Isso foi o que me entristeceu. Como eu recebi um papel, ele também deve ter recebido. Passei anos com medo que ele voltasse a aparecer." Raquel não tem razões de queixa das forças de segurança, mas, olhando para trás, considera que uma lei específica "anti-stalking" faria diferença. Desde a primeira ameaça até à emissão das ordens do tribunal dá-se um período de tempo muito grande: "Se ele tivesse intenção de me fazer mal, de me matar, tinha tido mais do que tempo para o fazer."

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