Free jazz: 10 discos (parte 4)

O Bodyspace seleccionou uma dezena de obras do "free jazz", estilo surgido em meados da década de 60

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Angela Costa

Charlie Nothing - "The Psychedelic Saxophone Of Charlie Nothing" (1967)

Takom

Não há género mais difícil de definir do que o jazz. Consequentemente, não há subgénero mais difícil de definir do que o "free" jazz; ou será o som de artistas como Sun Ra, Ornette Coleman e Albert Ayler exactamente o mesmo? E que dizer então de Charlie Nothing, que até era menos reconhecido como músico do que como construtor de instrumentos estranhos a partir de automóveis?

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Charlie Nothing - The Psychedelic Saxophone Of Charlie Nothing

Em 1967, um ano antes de Peter Brötzmann destruir o mundo com o seu saxofone-metralhadora, Nothing tinha no seu "Psychedelic Saxophone" a última possibilidade de redenção. É um disco exploratório, quase místico, ruptura do homem consigo mesmo; uma "ego death" criada a partir de um simples instrumento, ao qual se junta ora o leve "drone" de um gongo, ora o tribalismo inerente a uma conga, com o intuito, primeiro de pedir perdão ao Grande Espírito, com o intuito, segundo, de fugir aos cânones não só do jazz mas da música; a improvisação como motor único da experiência, da mesma forma que cada qual sente a religião à sua maneira. Duas faixas que totalizam pouco mais de trinta minutos, demasiado bom para se limitar ao estatuto de culto, e uma magnífica porta de entrada no mundo do "free" para quem, como eu, acha Evan Parker um chato de primeira. 

Wolf Eyes & Anthony Braxton - "Black Vomit" (2006)

Victo

Encontro histórico de rapaziada "noise" nascida e criada no punk e metal com um histórico do jazz, união de duas gerações e duas formas de abordar o som com mais afinidades do que de distâncias. É provavelmente a melhor coisa que já ouvi de Wolf Eyes: à crueza de "feedback" e destruição dos de Michigan, somam-se os sopros de fogo de Braxton. O encontro aconteceu ao vivo, em 2005, e felizmente houve alguém que o registou. Braxton tinha visto os Wolf Eyes uns meses antes e ficou estupefacto, ao ponto de comprar uma cópia de tudo o que tinham para vender nessa noite. Ouvem-se clássicos dos Wolf Eyes, mas a simbiose entre os lobos e Braxton cria algo de totalmente novo – ao ponto de pensarmos que os dois deviam fazer uma banda.

"The Mangler", longa faixa de 27 minutos que junta várias peças, abre com a quinquilharia ruidosa ao fundo e o saxofone de Braxton às curvas (os Wolf Eyes mais subtis do que nunca). O ruído vai-se adensando, com ocasionais fugas, até entrar "Stabbed in the Back", avassalador ataque "noise" em preparos heavy metal. A segunda peça, listada como "Rationed Rot", é na verdade uma interpretação tortuosa de "Black Vomit" (ouvimos Braxton a escolhê-la, com óbvio prazer no barulho que estavam a gerar). Há uma batida marcial, como no melhor dos Gristle, mas há também espaço para respirar. Essa é, aliás, uma das virtudes desta performance: dois mundos em diálogo, sem atropelos, a exibir mestria. Tudo isto só dura 33 minutos - devia durar muito mais. 

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