Eu olho para ti e tu olhas para mim

O mundo de Dan Graham está em movimento, mesmo visto a partir de uma cadeira de rodas. O último pavilhão do artista é uma reflexão sobre uma das mais amadas pinturas do século XX americano, retrato de uma incapacidade física.

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O pavilhão Dan’s World no terraço da Galeria Filomena Soares, em Lisboa nuno ferreira santos
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Foi com o anúncio, na ArcoMadrid, de que Helga de Alvear comprara uma obra histórica do norte-americano Dan Graham, exposta na galeria suíça Hauser & Wirth, que se percebeu que a feira de arte contemporânea espanhola tinha finalmente regressado à normalidade depois de uma abertura mais do que polémica. Com um gesto de 400 mil euros, Helga de Alvear, a coleccionadora, estava a conseguir apagar, finalmente, o gesto de Helga de Alvear, a galerista, que aceitara retirar do seu stand uma instalação de Santiago Sierra que criticava o processo catalão, a pedido da organização da feira. Como é que uma das melhores galerias espanholas pactuara com aquilo que muitos descreviam como acto de censura? A discussão incendiou a ArcoMadrid e não se falava de mais nada.

Foi então que o poderoso galerista Iwan Wirth, um dos homens mais influentes do mundo da arte, emitiu um comunicado revelando que o pavilhão de Dan Graham que trouxera a Madrid iria integrar “uma das melhores colecções de arte contemporânea da Europa”, a de Helga de Alvear. A galerista voltava ao seu lugar habitual — uma das coqueluches da feira —, com a compra de Pavilion For Showing Rock Videos, obra que Dan Graham fez em 2012, onde o artista mistura a paixão pelo rock e pela arquitectura, para não dizer mais.

Dan’s World é o título da série que junta os mais recentes pavilhões do nova-iorquino, de que a Galeria Filomena Soares, em Lisboa, mostra um dos exemplares no terraço do edifício, regressando a um artista com quem tem tido uma relação profícua. Quem vem de carro da zona oriental da cidade, consegue vê-lo empoleirado do lado esquerdo da Avenida Infante D. Henrique, antes da placa que sinaliza Xabregas e Madredeus a 100 metros de distância.

O artista, cuja vinda a Lisboa estava anunciada antes de o nevão em Nova Iorque ter dificultado a viagem, falou com o Ípsilon ao telefone na véspera da inauguração da exposição. Dan Graham, de 75 anos de idade, tem uma saúde frágil, por causa de uma infecção que quase o matou no Verão de 2016 e o manteve no hospital durante seis meses. Já consegue dar passos em casa, conta, mas está confinado a uma cadeira de rodas sempre que sai de casa, porque o internamento prolongado deu cabo dos seus músculos.

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Ao convocar o espectador para dentro do seu trabalho, os pavilhões de Dan Graham expandem-se até à performance. Ele também gosta de falar de dança, no sentido em que se trata do corpo em movimento numa situação social Nuno Ferreira Santos

Como é então o mundo de Dan e por que é que essa auto-referência contaminou as últimas obras? — perguntamos ao artista. “Dan’s World é sobre a pintura Christina’s World, de Andrew Wyeth. É uma rapariga a olhar para a natureza.” Exibida no Museum of Modern Art (MoMA), de Nova Iorque, pintada em 1948, Christina’s World é uma das mais amadas pinturas do século XX norte-americano e retrata Christina Olson, uma vítima da poliomielite que, tal como o artista, sofreu vários problemas de deterioração muscular até à parte inferior do corpo ficar paralisada.

Dan’s World, no entanto, responde o artista, é uma ideia anterior ao problema de saúde surgido em 2016.

O que vemos no terraço da Galeria Filomena Soares é uma estrutura com uma forma elíptica, construída em aço e vidro-espelho, por onde se entra apenas por um dos topos. Com o sol da Primavera, que teima em ir e vir, a superfície transparente torna-se mais reflectora e a obra de Dan Graham é toda sobre ver e ser visto. Sobre aquilo que o leva a classificar como pavilhão as suas obras, de que podemos ver também um exemplar no Jardim de Serralves, o artista explica que só decide no fim: “A peça tem que estar pronta para eu decidir o que lhe chamar. Mas digo que o meu trabalho é uma casa de brincadeiras para crianças e locais onde os pais podem tirar fotografias.” O humor, claro, também faz parte.

Dan Graham tem uma carreira com mais de 50 anos, que começou como galerista, nos anos 60, num percurso que não passou pela universidade. A sua prática vai da curadoria à escrita sobre arte, passando pela fotografia, vídeo, performance, além dos seus muito emblemáticos pavilhões, uma forma híbrida da sua expressão nómada entre suportes.

Os pavilhões, uma mistura entre escultura e arquitectura, às vezes mais uma do que outra, surgiram nos anos 80: “Nos primeiros pavilhões que fiz quis combinar paragens de autocarros e cabinas telefónicas com o Pavilhão de Barcelona de Mies van der Rohe.” Tal como o pavilhão do arquitecto alemão, símbolo da arquitectura moderna, os pavilhões de Dan Graham estão vazios a maior parte das vezes e podem ser entendidos como escultura habitável.

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Dan Graham tem uma carreira com mais de 50 anos, que começou como galerista. A sua prática vai da escrita ao vídeo, passando pela fotografia e performance, além dos seus emblemáticos pavilhões Charley Gallay/WireImage

Escultura/arquitectura

O pavilhão é, na sua essência, uma forma efémera num contexto urbano, que tem ganho, cada vez mais, uma componente paisagística. O primeiro que fez, diz-nos, foi para o Dia Center for the Arts, em Nova Iorque. Estas obras precisam de ser activadas por pessoas: “Os meus pavilhões sempre envolveram pessoas a olharem umas para as outras. O olhar das pessoas de fora a olharem para dentro e vice-versa.”

E voltamos a Mies van der Rohe, às torres de vidro, que permitem a quem está dentro observar o exterior, mas que se tornam opacas para quem observa de fora. Sem pessoas dentro, reconhece, podem parecer minimalistas, mas sem o contexto social perdem todo o seu significado.

Penelope Curtis, a directora do Museu Gulbenkian, que tem reflectido sobre o trabalho de Dan Graham ao longo da sua carreira, como na obra Patio and Pavilion: The Place of Sculpture in Modern Architecture, reconhece que os pavilhões do artista norte-americano instalados nos terraços, como no Dia ou em Lisboa, expandem o espaço de exposição que está por baixo, criando outro chão e outra forma de olhar fora das paredes brancas das galerias: “O seu trabalho é todo sobre percepção, quem está a olhar para o quê. Não lhe chamaria minimal; é mais uma mistura de sociologia e arquitectura. Embora os  pavilhões voltem bastante ao mesmo assunto — na minha opinião uma reflexão sobre o observador e o seu enquadramento — e usem um reportório consistente de materiais e formas, os ambientes diferentes onde são colocados podem acrescentar novos aspectos.”

A luz, o reflexo do sol, as nuvens, a envolvente, tudo faz mudar os pavilhões, que são “escultura/arquitectura”, assim mesmo com a barra no meio, diz o artista. “Eu gosto de ver o meu trabalho como um híbrido entre escultura e arquitectura. A interacção humana é bastante importante para o meu trabalho.”

Dan Graham recua até aos anos 70, aos vídeos em que explora o desfasamento temporal para o visitante se poder observar a si próprio a percorrer o espaço uns segundos antes, para falar dos pavilhões. “Penso que trabalhos como Dupla Exposição — o nome da peça de Serralves — é também sobre o desfasamento temporal, mas sem máquinas. Acontece isso com as estações do ano, com as nuvens, com os registos fotográficos que faço dos pavilhões. Eu envolvo sempre o tempo nos meus trabalhos.”

O trabalho de Dan Graham é geralmente enquadrado na geração dos artistas minimalistas e conceptuais, alguns dos quais expôs na Galeria John Daniels em Nova Iorque, como Donald Judd, Sol LeWitt, Robert Smithson ou Dan Flavin. Uma das suas primeiras obras, Homes for America (1966-67), está entre as seminais do conceptualismo, propondo uma reflexão sobre a expansão dos subúrbios norte-americanos no pós-guerra, sobre a massificação da arquitectura, aquilo que via acontecer perto da casa dos seus pais em New Jersey. “Eram fotografias amadoras. O trabalho sobre os subúrbios foi publicado numa revista. Era descartável. Depois da II Guerra Mundial as casas tinham que ser construídas muito rapidamente e não eram para durar para sempre. Usava-se a produção em massa, tal como para os carros.”

Perguntámos-lhe qual a diferença entre um artista e um galerista, ele que se tem insurgido, em várias entrevistas, contra a influência do conceptualismo, renegando a classificação. “Eu queria ser um escritor. Acho que muitos artistas nessa altura queriam ser escritores, como Robert Smithson ou Dan Flavin. Eu pensei que ia escrever sobre arte. A galeria foi só um acidente. Como não tinha emprego, tornei-me um negociante de arte. Conhecer directamente os artistas teve enorme influência em mim.”

Como faz muitas vezes, ele que já disse que o humor anarquista era importante para o seu trabalho, desconstrói a conversa: “Uma das razões por que quis fazer arte é porque viajava. E como nunca fui para a universidade, era um processo de aprendizagem.” Conta que Sol LeWitt lhe falou da influência de De Chirico e do planeamento da cidade. Dan Flavin do construtivismo russo, explorando a relação entre arquitectura e arte.

Ao convocar o espectador para dentro do seu trabalho, os pavilhões de Dan Graham expandem-se até à performance. Ele também gosta de falar de dança, no sentido em que se trata do corpo em movimento numa situação social, mas com Dan Graham nunca se sabe até onde vai a conserva e o hibridismo entre os media. Ao pedido de se pode elaborar mais um pouco sobre a relação dos últimos pavilhões com o movimento, numa última tentativa de relacionarmos os mundos de Christina e de Dan, ele responde, telegraficamente, já através do email: “The pavilions are made for walking.” 

Como as botas, de Nancy Sinatra, no seu hit de 1966, These Boots Are Made for Walkin’, mas aí já entraríamos noutra paixão de Dan Graham, no documentário Rock is My Religion, na série de que faz parte o pavilhão comprado por Helga de Alvear. E não devolvemos a pergunta.

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