Silvina está há oito anos em Portugal mas o filho ainda não tem direito ao SNS

Esteve anos até conseguir trazer os filhos de Cabo Verde. Quando finalmente chegaram, o SEF marcou a data de entrega do cartão de autorização – que já tinha aprovado – para seis meses depois. Nesse período um dos filhos de Silvina Lopes ficou doente: as contas no hospital já somam quase tanto como a renda de casa.

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Mariana Soares

Quando há oito anos saiu da Praia, capital de Cabo Verde, Silvina Lopes deixava para trás sete filhos. Tinha sido vendedora ambulante em vários locais da ilha de Santiago, uma rabidante, como se chama. Na Assomada, no Tarrafal, na Praia, Silvina Lopes vendia roupa para homem e mulher, mas o que ganhava não chegava para alimentar as oito bocas. Sentada num escritório em Queluz, linha de Sintra, fala da família com a voz trémula e baixa os olhos. É nitidamente um assunto que a incomoda.

Mãe solteira, Silvina Lopes veio para Portugal à procura de uma vida melhor para ela e para os filhos, conta. A ideia era legalizar-se para depois mais tarde os trazer. Não pensou que fosse tão difícil. Nem que viesse a acumular dívidas no Serviço Nacional de Saúde (SNS) por causa dos atrasos na entrega de um cartão. Mesmo quando já ultrapassou todas as provas exigidas, Silvina Lopes tem que esperar meses pelo documento que dá aos filhos o acesso aos seus direitos como cidadãos — o abono de família, ou os cuidados médicos.

A sua história é uma mistura de outras tantas histórias de imigrantes que acabam a trabalhar na limpeza ou como domésticas. Quando chegou a Lisboa, começou por ficar em casa de uma familiar na Amadora, até encontrar emprego como trabalhadora doméstica interna em Oeiras, linha de Cascais. Cuidava de três crianças, dos 14 aos 8 anos, tratava da limpeza, passava a ferro, cozinhava, fazia tudo das 7h às 23h, com poucas horas de intervalo. Ganhava 400 euros, sem contrato de trabalho, essencial para conseguir a autorização de residência emitida pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). “Pedia o contrato mas os patrões diziam que não dava”, conta.

Ao fim de dois meses decidiu que não iria continuar a aceitar aquelas condições e foi-se embora. Começou a trabalhar num restaurante no centro de Lisboa, em Alcântara, com dois turnos: das 10h às 15h e das 17h às 23h, por 550 euros. Ficou um ano e tal. E durante um ano e tal foi pedindo contrato aos patrões. Ouviu sempre “que iam fazer, iam fazer”. Mas nada, e Silvina Lopes continuava em situação irregular.

Entretanto, ia fazendo os descontos para a Segurança Social na expectativa de ir ao SEF no dia em que lhe assinassem finalmente o contrato — descontar era uma condição exigida pelo Estado nessa altura para atribuir uma autorização de residência a quem já estava em Portugal e queria ficar a trabalhar (requisito esse que foi anulado com as recentes alterações à lei). “Sofri muito naquele trabalho. Entrei como copeira, passei a ajudante de cozinha, fazia limpeza, fazia sobremesas, estava tudo em cima de mim”, queixa-se. “Mas precisava de dinheiro e dos documentos.”

Os donos do restaurante chegaram a dizer-lhe que tinham pago a sua parte da Segurança Social. Não era verdade, descobriu mais tarde. Sem documentos, com os patrões a recusarem fazer contrato, decidiu ir de novo embora. 

Mais tarde entrou numa empresa de limpeza que lhe deu finalmente o contrato com o qual conseguiu ir ao SEF e legalizar-se. Ao mesmo tempo, trabalhava “em casa de patrão”. Hoje diz que lhe falta apenas uma hora para as 40 semanais no hipermercado onde está como empregada de limpeza há três anos, subcontratada por uma empresa.

Com a vida mais estável e algum dinheiro poupado, no ano passado conseguiu finalmente ter condições para mandar vir três dos seus filhos, dois meninos e uma menina de 18, 17 e 14 anos.

Mudou-se de um quarto alugado para um apartamento que arrenda por 350 euros por mês, em Queluz. Tinha ainda outro trabalho (que entretanto perdeu porque a empresa fechou).

Ao longo de oito anos, Silvina conseguiu voltar a Cabo Verde apenas duas vezes. Em Maio pôs os papéis no SEF para trazer os filhos, andou para trás e para a frente, teve de entregar certificado de meios de subsistência — uma portaria do SEF exige que ela ganhe o salário mínimo, mais 30% por cada filho menor — , comprovativo de que tinha alojamento, entre várias outras provas.

Direito a juntar a família

Estava a usufruir de um direito consagrado na lei portuguesa de estrangeiros que permite ao cônjuge, filhos menores ou incapazes, adoptados, filhos solteiros a estudar, e outros familiares juntarem-se. É, de resto, reconhecido pelas Nações Unidas o direito do trabalhador imigrante se reunir com a sua família. Foi o que aconteceu a 7500 cidadãos que foram regularizados em Portugal por via do reagrupamento em 2016 (últimos dados disponíveis). Mas a burocracia no SEF trava ou atrasa muitas vezes a sua concretização. 

Silvina recebeu luz verde para as crianças virem. Entre o valor das passagens de avião e seguros de viagem gastou mais de mil euros. Foi dinheiro que “juntei, juntei, juntei” diz.

Em Setembro chegaram finalmente os filhos, a tempo de começarem a escola. Só que a dor de cabeça começou aí.

Como habitual, depois de autorizado o pedido de reagrupamento familiar, o SEF comunicou ao Ministério dos Negócios Estrangeiros para que, junto do Consulado respectivo, iniciasse o processo de concessão de visto de residência.

Depois disso, já com os imigrantes em Portugal, é necessário que o SEF emita não um visto mas uma autorização de residência. Quando os jovens chegaram a Portugal foi isso que a mãe fez, dirigir-se ao SEF para formalizar a regularização.

O problema é que nada disto é automático ou breve. Demora outro longo período, quase como se estivesse a iniciar o processo desde o princípio. A família está à espera dos cartões desde essa altura, há seis meses. O que quer dizer que, apesar de Silvina Lopes descontar para a Segurança Social, não pode receber o abono de família, os filhos não têm escalão do serviço de acção social que lhes permite ter acesso a refeições e manuais escolares grátis mas sobretudo não podem usar o SNS sem pagar elevadas taxas.

Segundo o SEF, o prazo de instrução para estes casos é de três meses mas pode ser prorrogado. É o que está a acontecer a Silvina Lopes. O preço do processo não é baixo: os valores para os pedidos variam de um mínimo de 38,60 euros (para nacionais de países com os quais Portugal celebrou acordos de isenção de taxas) até um máximo de aproximadamente 300 euros, acrescenta aquele organismo.

A espera é, assim, o grande drama da família neste momento porque, entretanto, já em Portugal, foi diagnosticado a um dos filhos de Silvina Lopes um problema de saúde — que diz não saber o quê é. Desde os dez anos que ele vivia sem a mãe.

Internado três vezes

O jovem já foi internado três vezes e a mãe recebeu várias contas em casa, a ascender os 300 euros, quase o que paga pela casa. Sem cartão de utente, o filho não pode ter acesso aos hospitais de forma gratuita.

Ela já explicou várias vezes na Segurança Social o problema: já tem a autorização. Mas de nada lhe serve. “Por que é que tenho que fazer a marcação, se o SEF já deu autorização?”, questiona-se.

Subtraindo ao seu vencimento o custo do passe social (na sua zona, 70 euros) e a renda da casa, pouco lhe sobra para alimentar os filhos. “Não tenho ajuda.”

Recebe pouco mais de 500 euros, mas basta chegar uns minutos atrasada, ficar doente, ter uma consulta, ter algum problema que a impeça de trabalhar para esse valor descer porque é paga à hora, queixa-se. Por isso, em oito anos, “nunca” foi a um hospital. Tem uma dor no joelho há muito tempo mas está a adiar a consulta. Não se pode dar ao luxo de ficar doente. “Senão não ganho”, diz. “Não quero ter dívidas.”

O processo, no SEF, já está completo. O longo período de espera deverá estar prestes a chegar ao fim. Marcaram-lhe a entrega oficial da autorização de residência do filho para fim deste mês. Só as dívidas no SNS que foi acumulando é que continuarão a aparecer na sua conta.

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