Uma exposição habitada pela guerra

Cartaz Cubanos de OSPAAL 1960-1980, na Galeria Zé dos Bois, é mais do que uma mostra de cartazes realizados no século XX. É uma exposição habitada pela guerra, pela arte ao serviço da política, pela propaganda e pela denúncia de um mundo sem um rosto decente.

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Arte final de Lázaro Abreu Padrón para a revista Tricontinental

Nestes dias de tórrida desordem, há uma exposição patente na Galeria Zé dos Bois que corre o risco de passar ignorada. Chama-se Cartazes Cubanos da OSPAAAL 1960-1980 e ocupa dois pisos da sala lisboeta, com imagens que exortam à luta política, à resistência contra o abuso de poder, contra o domínio militar dos Estados Unidos, e a sua interferência na América Latina, contra o colonialismo. Coloridas, comunicativas, umas próximas da sátira, a outras de ostensivo cariz propagandista, transportam o espectador para a história da Guerra Fria, aludindo a alguns dos seus principais intervenientes, bem como aos conflitos políticos e militares que a marcaram. Che Guevara, Richard Nixon, Amílcar Cabral, Patrice Lumumba, Augusto Pinochet, o Vietname, as guerras de libertação no continente Africano, a repressão militar na América Latina, a violência do Apartheid. Esta é uma exposição assombrada por promessas e sonhos utópicos, fantasmas e desastres. Mas, acima de tudo, uma exposição de imagens.

Natxo Checa, o curador e, também director-geral da galerista lisboeta, conta de onde vieram: “Fazem parte da revista Tricontinental e dos cartazes que a acompanhavam em formato de separata. Durante décadas foram enviadas para 82 países, lidas, passadas de mão em mão. Os cartazes eram colados em casa, fotocopiados, usados. Tinham como finalidade comunicar. Não eram peças de colecção. Hoje, só em Cuba, e noutros países, em colecções privadas e institucionais, se encontram cópias em bom estado”. Para compreender a raridade da revista, bem como as razões da sua distribuição é necessário ter em conta as circunstâncias do seu nascimento. Na sequência da Conferência Ásia-África e do Movimento de Países Não Alinhados, realizou-se em 1966, em Havana, a Primeira Conferência Tricontinental, que pretendia realizar a afirmação internacionalista de um conjunto de países, tendo como inspiração a revolução cubana. Um dos instrumentos criados para esse objectivo foi a Organização de Solidariedade para com os Povos de África, Ásia e América Latina (OSPAAAL), à volta da qual se reuniriam vários artistas e designers gráficos cubanos como Alfredo Rostgaard, Enrique Martínez Blanco, Lázaro Abreu Padrón, Rafael Morante Boyerizo, Olivio Martínez Viera e Antonio Fernández Mariño. Foram eles que puseram em marcha a Tricontinental, fazendo-a circular – com frequência, clandestinamente – pelos 82 dois países participantes, e são deles uma boa parte dos trabalhos que a ZDB apresenta.

Linha, superfície e cor

Sem o torniquete do realismo socialista e ultrapassando os limites do cartaz político mais banal, os cartazes e as serigrafias da OSPAAAL conciliam a necessidade de comunicar e convencer com a liberdade formal e estilística. Note-se o cartaz, de 1968, que publicita a Ethiopian Airlines com reproduções fotográficas de homens enforcados e a referência a lugares que os turistas ocidentais podem visitar; ou aqueloutra, do mesmo autor (Alfredo G. Rostgaard, director artístico da organização) que, recorrendo à figuração pop, crítica o militarismo e o capitalismo nos EUA. As técnicas das vanguardas artísticas, a apropriação do fotojornalismo, o desenho mais realista ou mais estilizado, o cartaz de cinema, a arte do psicadelismo, a arte pop estavam ao serviço da denúncia que a OSPAAAL fazia da violência política, social e económica.

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Cartaz da Jornada de Solidariedade para com o Congo, 1972, de Alfredo G. Rostgaard; Cartaz alusivo ao desaparecimento de Ben Barka, 1971, de Antonio Fernández

Em harmonia com o cariz internacionalista da Tricontinental, são as imagens, feitas de linha, superfície e cor, que sobressaem. Mais do que as palavras (que identificam os países e as lutas), são elas que interpelam o visitante, que ficam na memória, que surpreendem, com simplicidade e rapidez, quem olha os cartazes. O equilibro entre a imaginação do designer e a ligação a uma realidade concreta (local e cultural, como se pode testemunhar nos conjuntos dedicado a África e a certos países asiáticos) era fundamental para que as imagens fossem compreendidas pelos destinatários. Natxo Checa chama a atenção para cartaz de Ernesto Padrón Blanco alusivo à Guerra no Vietname que à primeira vista, parece deslocado da exposição, até que um olhar atento sobre a composição permite descobrir filas geométricas de chapéus de palha (em forma de cone) dos quais rompem metralhadoras. Em Cartazes Cubanos da OSPAAAL 1960-1980, para lá das técnicas e dos recursos estilísticos, é a realidade da guerra, como acção política moderna, que os cartazes comunicam e, por vezes, exaltam. As metralhadoras, as espingardas, os atiradores, os combatentes, as miras e os alvos multiplicam-se numa estilização que a dada altura confunde, atrai e, por isso, perturba. Repare-se noutro cartaz do mesmo autor, em apoio ao povo Moçambicano, no qual um cartucho de uma metralhadora, pelas suas formas, cores e linhas, podia ser elogiado como bom design, ou nas imagens consagradas à resistência palestiniana e árabe no contexto da ocupação israelita. Sem prejuízo das causas e das lutas evocadas, representam e engradecem o belicismo.

Propaganda, humor e denúncia

A arte como meio para um fim (a construção de uma nova sociedade) é um dos grandes assuntos da exposição e não se detém nos cartazes e nas capas da Tricontinental. “Quando estive em Cuba em Dezembro, descobri, para além do grupo dos OSPAAAL 1960-1980, outros artistas gráficos, menos conhecidos, que fizeram publicidade revolucionária, que produziram cartazes”, conta o curador. “Um deles foi o Pepe de La Paz, da cidade de Cienfuegos [centro de Cuba], que esteve ligado aos Comités de Defesa de Revolução, e que achei importante trazer aqui”. Em termos visuais e temáticos, mais discreta que a dos seus compatriotas, a arte de Pepe La Paz esteve ao serviço de campanhas públicas, e a economia e invenção visual das suas imagens, apelando à limpeza das ruas, à separação de resíduos, à poupança de água e da electricidade, não perdeu pertinência ou significado. Há uma simplicidade quase universal nas linhas e nas cores, adequada aos conteúdos das frases, que não menoriza e não agride os seus utilizadores. Mais do que influenciar, procura sensibilizar.

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Arte final de Lázaro Abreu Padrón para a revista Tricontinental
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Cartaz da marcha pelo Viet Nam, 1971, de Ernesto Padrón Blanco

De regresso aos cartazes dos OSPAAAL, o espectador reencontra a história dos grandes protagonistas políticos, como Che Guevara, Patrice Lumumba, cujo perfil, num trabalho de Alfredo Rostgaard desenha um colorido continente Africano, ou Mehdi Ben Barka, o político marroquino de esquerda (desparecido em Paris em 1965) homenageado em dois cartazes a preto e branco que comunicam uma melancólica dignidade. Na exposição, se algumas figuras são representadas como personagens eternamente mitificadas, outras são símbolos de uma realidade política que (por motivos diversos) não se cumpriu.

A propaganda, como meio do esforço de guerra, atravessa inevitavelmente a exposição, mas há dois momentos em que o seu peso se atenua. Nas imagens em que o humor e a sátira se intrometem e no ataque ao racismo nos Estados Unidos e ao Apartheid na África do Sul. Não se trata já de vencer o inimigo ou de impor um novo regime político, e sim combater uma realidade humanamente inaceitável, destituída de um rosto decente. A propósito da primeira saliente-se mais um cartaz de Rostgaard, desta vez a solicitar a participação do espectador: sob um desenho do antigo presidente dos EUA, Richard Nixon, aquele pode descobrir, levantando os quase impercetíveis recortes, a imagem de um vampiro risível e, ao mesmo tempo, ameaçador. Acerca das outras imagens, mencione-se o cartaz de 1971 em que Lázaro Abreu Padrón alerta para a situação dos reclusos da Prisão de Attica, em Nova Iorque (o OSPAAL estabeleceu uma relação próxima com o Black Panthers Party e em especial com o artista Emory Douglas a quem a Galeria Zé dos Bois dedicou há seis anos uma exposição) e a maqueta de uma Tricontinental em que o globo das Nações Unidas cai sobre a palavra Apartheid, esmagando-a. São imagens simples, modestas, quase amadoras, que recordarem ao espectador acontecimentos e fenómenos passados, mas que não o abandonam na história. O mundo que vemos em Cartazes Cubanos da OSPAAAL 1960-1980 acabou e ao mesmo tempo persiste, porventura com outras roupagens e feições, mas com violência e tragédias semelhantes. Recordar isso é a melhor homenagem que se pode prestar à generosidade do activismo artístico de Alfredo Rostgaard, Enrique Martinez Blanco, Lázaro Abreu Padrón, Rafael Morante Boyerizo, Olivio Martínez Vier, Antonio Fernandez.

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