Quem fiscaliza as câmaras municipais?

A grande maioria das assembleias municipais está longe de poder desempenhar o papel fiscalizador que a Constituição lhe atribui.

Vêm aí eleições autárquicas, altura em que a atenção se volta um pouco mais para este escalão da nossa vida democrática. Os boletins de voto são três — para a câmara, para a assembleia de freguesia e para a assembleia municipal. Mas é a escolha para a liderança dos executivos municipais que costuma dominar todas as atenções.

Em Portugal vigora um regime semipresidencialista a nível nacional, presidencialista a nível municipal e quase parlamentar a nível das freguesias. Explico melhor: o primeiro-ministro não é directamente eleito, resulta da escolha e convite do Presidente da República “tendo em conta os resultados eleitorais”. Já o presidente da câmara é o cidadão que encabeçar a lista mais votada para o respectivo órgão, sendo os vereadores directamente eleitos segundo o sistema proporcional. Quanto ao presidente da junta, é igualmente o cidadão que encabeça a lista mais votada para a assembleia de freguesia, mas os vogais da junta são eleitos pelos órgãos deliberativos, obrigando sempre a negociações quando nenhuma força política tem maioria. Nas pequenas freguesias com menos de 150 eleitores, que julgo já não subsistirem no actual mapa autárquico, o modelo era de democracia directa, sendo presidente o cidadão eleito pelo plenário de cidadãos eleitores.

O regime presidencialista nos municípios tende a concentrar todas as atenções na figura do presidente, desvalorizando o papel dos órgãos deliberativos e criando duas instâncias de escrutínio: uma quotidiana, na câmara, com os vereadores da oposição; outra mais esporádica, na assembleia municipal, que tem uma composição híbrida, pois além dos deputados municipais eleitos inclui, por inerência, os presidentes de junta de freguesia, o que em municípios com elevado número de freguesias distorce a composição da assembleia municipal. Em Lisboa, por exemplo, em 75 membros, 24 são presidentes de junta, que votam todas as matérias, incluindo as que dizem respeito às delegações de competências e recursos para as suas próprias freguesias, o que a meu ver é uma incongruência.

Dir-me-ão que o sistema pode ser complexo mas até tem funcionado: não tem havido instabilidade eleitoral nem ingovernabilidade a nível autárquico, salvo situações pontuais. E nunca se registou nestes 41 anos de poder local nenhuma crise grave nesta instância de poder. Isso não significa que não se deva fazer um balanço e, sobretudo, que não se deva questionar se o pendor presidencialista nos municípios não tem inibido o necessário escrutínio dos eleitos para as assembleias municipais e, através delas, dos próprios cidadãos.

É minha convicção, em resultado da experiência e conhecimento que tenho, que a grande maioria das assembleias municipais está longe de poder desempenhar o papel fiscalizador que a Constituição lhe atribui, por inúmeras razões, desde logo a mais elementar: como não têm autonomia administrativa nem financeira, só podem reunir se a câmara lhes proporcionar meios e apoios, incluindo o pagamento das senhas de presença dos deputados municipais, que não têm remuneração permanente. Raras são as assembleias municipais com um quadro de pessoal próprio e mais raras ainda, se não for caso único a de Lisboa, as que proporcionam apoio político próprio aos diferentes grupos municipais. Também muito poucas terão páginas autónomas na Internet, instrumento hoje fundamental para aumentar a transparência das decisões e o escrutínio dos cidadãos.

Lisboa tem sido uma excepção. Neste mandato, vamos em 143 reuniões plenárias, a maioria das quais extraordinárias, quando a lei prevê apenas cinco sessões ordinárias por ano. Temos oito comissões permanentes que já realizaram 990 reuniões, das quais resultaram mais de 600 pareceres publicados na nossa página electrónica. Temos um corpo de 35 funcionários municipais afectos à assembleia (de um total de cerca de 8000 funcionários municipais e das empresas locais). E tudo isto representa um custo de apenas 0,1% do orçamento do município.

É minha convicção que é necessário mudar este estado de coisas, garantindo às assembleias municipais em todo o país melhores condições para exercerem o seu papel. Isto é tanto mais urgente quanto maior for o alcance da reforma da descentralização, em termos de reforço de competências e recursos dos executivos municipais.

Não vejo este assunto ser debatido, nem no Parlamento nem nos media. E, no entanto, pode estar aqui o calcanhar de Aquiles de uma reforma do Estado que está a desvalorizar uma regra essencial: a mais poder terá de corresponder maior fiscalização. Bem sei que os municípios já são bastante fiscalizados por várias instâncias, mas tem-lhes faltado o pilar democrático em que deveria assentar o principal escrutínio político.

 

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