As metamorfoses de um poeta

A obra poética de Armando Silva Carvalho, construída ao logo de mais de meio século, impõe-se hoje com uma força extraordinária que levou algum tempo a reconhecer.

Armando Silva Carvalho foi um poeta fora de todas as constelações. Nas histórias parciais e visões panorâmicas da poesia portuguesa do último meio século, o reconhecimento que lhe coube não foi exuberante, mas também não foi propriamente exíguo. Porém, faltou quase sempre verificar e salientar que a sua grandeza permaneceu um pouco retraída e o seu espaço soberano não era apreensível imediatamente. Foi já neste século, com os seus últimos livros, que a grandeza da poesia de Armando Silva Carvalho (a sua prosa, os seus romances, situam-se num plano muito menos elevado) ganhou uma enorme evidência. Eis um poeta que não só nunca enfraqueceu, mas ainda foi ganhando tempo, no sentido em que a sua poesia, tão livre das contingências epocais e geracionais, pareceu ter chegado agora ao momento de uma mais justa e efectiva legibilidade.

O seu livro de estreia é de 1965 e chama-se Lírica Consumível. É um título que anuncia o ethos mais característico deste poeta e que, com diferentes inflexões, sobreviveu até ao fim. Trata-se da atitude irónica e hostil face à afectação “poética” do esteta e do literato. A aversão à autocontemplação literária e à expressão enfática atravessam toda a sua poesia. A arma cruel da sátira e da irrisão é usada sem condescendências e não poupa sequer aquele que tão bem a sabe usar. Terminava assim o poema Fragmentos de uma Ideia Burguesa, desse primeiro livro: “Andando Armando a rima zune/ e o pensamento afasta prejuízos/ e só sorrisos são/ a morte natural do entendimento”. Começaram aqui a delinear-se o tom e a configuração temática presentes em toda a sua poesia: o mal-estar e a distância face à comédia da vida e dos costumes. Essa distância não se manifesta apenas de maneira satírica ou irónica, pode ser muito menos lúdica e adquirir mesmo um lado negro, quase sinistro, como acontecia num livro de 1995, Canis Dei, cujos poemas eram exercícios que tinham no centro a palavra “cão” e todas as suas variações e irradiações semânticas. "Canis dei", cão de deus, é a versão elevada, sublimada, de uma “vida de cão”. E é nessa direcção de uma vida canina, rebaixada na sua condição, que se dirigem todos os poemas deste livro, promovendo uma indistinção entre o alto e o baixo, entre a sublimidade e a vulgaridade. E, mais uma vez, a arma é apontada contra aquilo que num poema deste livro é designado por “aura poética”: “Ninguém é filho do poema universal./ Nem pai/ do seu rebanho de versos./ O que eu busco é um lar./ Um lar mais natural nas palavras/ da terra/ com os lábios invisíveis sobre o livro/ dos mortos”.

Se neste livro, assim como noutros lugares da obra de Armando Silva Carvalho, nos aproximamos de algo próximo de uma visão trágica, trata-se porém de um trágico moderno que admite o ludismo irónico e satírico. Um dos grandes feitos da sua poesia consiste precisamente em juntar e tornar compatível o que geralmente é mutuamente exclusivo: o lirismo e a crítica, o ludismo e a crueldade, a sátira e a adesão jubilante ao mundo da vida, o social e o privado, a política e o erotismo. Lembremos que um dos filões fundamentais da poesia de Armando Silva Carvalho é precisamente o da crítica social e política, através de uma objectivação satírica, e às vezes jocosa, da realidade nacional. É uma poesia altamente corrosiva, na sua mordacidade: Leia-se o início deste poema intitulado W.C (do livro de 1981, Sentimento de um Acidental): “Neste país onde ninguém sabe/ como obram as musas,/ já dizia o outro,/ fazer versos realmente versos,/ que sigam o espasmo do ânus provecto/ dessas criaturas fúteis, decantadas,/ ainda é e será muito difícil”. Esta poesia, livre de todos os puritanismos (sejam eles formais ou temáticos), torna-se assim uma força crítica para enfrentar o mundo. Mas é também uma força crítica do Eu em relação a si próprio e uma via de acesso às regiões mais privadas e pessoais, como acontece com mais frequência nos seus últimos livros, onde são bem visíveis algumas inflexões mais confessionais e intimistas.

Por outro lado, Armando Silva Carvalho deixou na sua obra manifestações explícitas de homenagem a alguns dos seus contemporâneos, por exemplo Herberto Helder, Fiama Hasse Pais Brandão e Alexandre O’Neill (talvez a afinidade com este último, pelo menos na veia satírica, seja mais visível; mas, em muitos outros aspectos, há um mundo imenso que os separa). Mas não devemos ver nessas evocações a prova de uma relação de influência ou uma afinidade electiva. A sua poesia atravessa o tempo com uma enorme singularidade e não permite aproximações imediatas. No entanto, ela desenvolve-se no horizonte de um grande diálogo com a poesia portuguesa, não apenas a contemporânea. Sentimento de um Acidental era obviamente uma evocação de Cesário Verde.

E há ainda a prosa, certamente menos importante do que a poesia. Mas, ainda assim, destaque-se um livro tão iconoclasta como Portuguex (1977) e uma experiência interessantíssima, a quatro mãos, com Maria Velho da Costa, que tem por título O Livro do Meio (2006), um romance epistolar (à maneira do século XVIII), divertido, cheio de disputas e divergências entre dois amigos. E há também as traduções, de autores franceses e italianos.

Armando Silva Carvalho moveu-se sempre entre géneros e entre línguas, com uma grande maleabilidade. Foi, no mais alto grau, um escritor ecléctico e capaz de usar as armas da crítica e do desencanto sem cair no niilismo nem no cinismo.  

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