O “Barroco disfarçado” nas polifonias fúnebres de Antuérpia

Empolgante interpretação dos Graindelavoix de um conjunto de obras polifónicas, impressas em Antuérpia nos séculos XVI e XVII.

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O agrupamento Graindelavoix Koenbroos

O agrupamento Graindelavoix tem tido uma presença marcante nas últimas temporadas Gulbenkian, apresentando-se normalmente em concertos na Igreja de S. Roque, espaço bem mais sugestivo e adequado ao repertório sacro medieval e renascentista proposto por Björn Schmelzer.

A empolgante interpretação dos Graindelavoix de um conjunto de obras polifónicas, impressas em Antuérpia nos séculos XVI e XVII nas famosas tipografias Plantin e Phalèse, retoma em grande parte o conteúdo do último CD do grupo na etiqueta Glossa, mais concretamente o Requiem a 8 vozes de Orazio Vecchi (1550-1605), provavelmente interpretado no funeral do pintor Peter Paul Rubens (ainda que não exista uma prova documental), e excertos da Missa Praeter rerum seriem, de George de La Hèle (1547-1586), talentoso compositor flamenco hoje injustamente esquecido que trabalhou em Espanha na corte de Filipe II.

O CD inclui ainda música de Pedro Ruimonte e o Agnus dei da Missa Dum aurora do português Duarte Lobo, compositor representado no concerto de S. Roque por algumas rubricas da sua Missa pro defunctis a 8 e pelo belo motete a 6 vozes Audivi vocem de caelo. Vale a pena referir que estes compositores serviram também de banda sonora à exposição Divine Interiors: Architectural painting in Antwerp, promovida pelo Museu Mayer van den Bergh, da qual resultou um magnífico livro acompanhado por um CD dos Graindelavoix e um estimulante ensaio de Björn Schmelzer intitulado Singers in a church: implications of voice, sound and movement in post-iconoclastic interiors.

Esta abordagem multidisciplinar (recordem-se as colaborações anteriores do grupo com Anne Teresa de Keersmaeker) constitui um dos traços fortes de Björn Schmelzer e da sua procura incessantemente de novas relações entre as artes, o conhecimento e as dimensões histórica e antropológica. Os resultados musicais nem sempre são consensuais, sobretudo para os que defendem uma tradição mais purista na interpretação da música antiga, mas a qualidade artística dos Graindelavoix é indiscutível.

O domínio técnico na coordenação de texturas musicais complexas, aliado à facilidade com que alguns cantores experientes nas músicas de tradição oral adicionam com naturalidade ornamentação ao repertório de outras eras, e o forte impacto emocional e estético das suas prestações parecem por vezes transportar-nos para outra dimensão. Assim sucedeu com a música de Hèle, Lobo e Vecchi, ilustrativa de diferentes vertentes da sofisticação contrapontística dos seus autores no âmbito da prima prattica (ou estilo antigo, em contraste com a seconda prattica ou estilo moderno do Barroco emergente).

Os Graindelavoix conferiram-lhe uma apelativa imagem tímbrica e uma flexibilidade rítmica que a afasta das leituras mais austeras e uniformes deste repertório. Se a imaginação polifónica de La Hèle foi uma revelação, Duarte Lobo adquiriu novo colorido sonoro (com o Motete Audivi vocem de caelo numa versão menos etérea do que é habitual) e a variedade de escrita de Vecchi foi objecto de eficazes contrastes. Salienta-se a subtileza dos cromatismos em função da relação texto-música e a pouco habitual versão polifónica integral do texto do Dies Irae, que joga com o potencial dramático da alternância do coro duplo.

Nas notas ao programa, Schmelzer discorre sobre a ideia de um “Barroco disfarçado” nesta música por oposição ao Barroco exuberante da pintura de Rubens, defendendo que a prima prattica não é uma atitude conservadora, mas o vestígio de um passado que continua vivo. Seria igualmente interessante pensar as dimensões de “austeridade, vazio, negro e escuridão” que refere à luz do conceito de Maneirismo.

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