Uma campanha para preservar a última morada dos irmãos Van Gogh

O município de Auvers-Sur-Oise e o Instituto Van Gogh querem angariar 1,2 milhões de euros para restaurar as lápides de Vincent e Theo Van Gogh e a igreja contígua, que acusam a passagem do tempo e a grande afluência ao cemitério.

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Vincent e Theo Van Gogh DR
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Os túmulos dos irmãos Van Gogh no cemitério de Auvers-sur-Oise DR
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A Igreja em Auvers-sur-Oise (1890) DR

“O sol estava terrivelmente quente. Chegámos ao cemitério, um novo e pequeno cemitério palmilhado por lápides novas. Ficava na pequena colina para lá dos campos maduros para a colheita sob o vasto céu azul que ele ainda teria amado… talvez”, escreveu o pintor Émile Bernard numa carta ao crítico de arte Albert Aurier, datada de 2 de Agosto de 1890, onde relata o funeral de Vincent Van Gogh. O pintor, que se terá suicidado com um tiro no peito a 27 de Julho desse ano, não resistindo à infecção causada pela bala e morrendo dois dias depois, passou os últimos 70 dias da sua curta vida em Auvers-sur-Oise, uma vila a cerca de 30 quilómetros de Paris.

Aquela que foi a sua última morada necessita agora de uma intervenção urgente devido à degradação desencadeada pelas chuvas intensas de Outubro de 2015. O município de Auvers-sur-Oise e o Instituto Van Gogh, responsável pela conservação dos lugares que inspiraram o artista, estão a trabalhar para angariar 1,2 milhões de euros com o objectivo de restaurar o cemitério onde estão sepultados Vincent Van Gogh e o irmão, Theo, e a igreja de Notre Dame de L’Assomption, a ele adjacente.

As inundações são frequentes no cemitério e a igreja do século XIII, retratada por Van Gogh em A Igreja em Auvers-sur-Oiseobra que se encontra no Museu d’Orsay, em Paris –, está em risco de ruir, uma vez que o telhado foi danificado pela tempestade e deixa vazar a água. Também a excessiva afluência tem deixado mossa no solo onde jazem os restos mortais do pintor: o cemitério foi construído para receber entre cinco e dez mil pessoas por ano e é visitado por uma média de 250 mil. “É o cemitério mais visitado de França, a seguir ao Père Lachaise [em Paris]”, aponta Dominique Charles Janssens, citado pelo The Art Newspaper. O presidente do Instituto Van Gogh assinala que, apesar da deterioração das condições, “as pessoas continuam a vir e a pôr os pés na água”.

No ano passado, o estado francês e a administração local comprometeram-se a financiar 60% dos 600 mil euros necessários para reparar o telhado da igreja. O município vai contribuir com 20% do total, mas lançou uma campanha de crowdfunding em Junho de 2016 para assegurar os restantes 120 mil euros. Sete meses depois, foram angariados 57 mil euros, um valor que ainda continua distante da meta final, apesar das doações dos descendentes da família, de alguns museus e dos cidadãos. A primeira fase dos trabalhos terá início em Maio ou Junho na ala Norte da igreja, onde os estragos foram maiores, de acordo com o jornal francês Le Parisien.

Muitos dos visitantes que passam no cemitério de Auvers-sur-Oise para prestar homenagem a Van Gogh deixam girassóis ou espigas de trigo dos campos circundantes na sua lápide, em alusão às paisagens que pintou. Por ocasião do aniversário da sua morte, em Julho do ano passado, o Le Figaro reportou que o Instituto Van Gogh estava a pedir que, em vez de flores, o público oferecesse doações para ajudar a preservar aquele sítio.

Além de contribuições para o restauro total da igreja, são necessários 600 mil euros para instalar um sistema de drenagem adequado no cemitério, assim como novos sistemas de iluminação e de segurança. A organização pretende, ainda, reabilitar os terrenos à volta da igreja – que serve actualmente de parque de estacionamento – para corresponder à descrição que o pintor fazia do lugar numa carta à irmã Willemina, retratando-o como “um delicado espaço verde e florido”. Deverão ser, ainda, construídas casas de banho, uma cobertura que sirva de abrigo aos visitantes e uma entrada com cadeado. Actualmente, a campanha contabiliza 100 mil euros, mas segundo Dominique Janssens o objectivo é chegar aos 600 mil até ao final de Julho.

Inseparáveis na vida e na morte

A vida de Vincent Van Gogh foi uma incessante batalha contra a doença mental, que lhe causava alucinações, falhas de memória e oscilações de humor. O seu estado de saúde piorou a partir do momento em que cortou a orelha esquerda com uma lâmina, em Dezembro de 1888. Após o tratamento de que se encarregou o médico Félix Rey ainda em Arles e o internamento numa instituição psiquiátrica em Saint-Remy-de-Provence, Van Gogh chegou a Auvers-en-Oise em Maio de 1890, para estar mais perto do irmão, Theo, e para consultar o Paul Gauchet, médico que lhe havia sido recomendado por Pissarro.

O curto período que passou naquela vila francesa foi o mais produtivo da sua carreira; dele resultaram 75 pinturas e mais de cem desenhos e rascunhos. Mas Van Gogh continuava acometido pelos ataques de perda de consciência que viriam a ditar o seu suicídio nesse Verão. O funeral decorreu um dia após a sua morte e contou com a presença não só de familiares e locais como de membros da comunidade artística parisiense, incluindo os pintores Lucien Pissarro, Charles Laval e Émile Bernard e o negociante de arte Julien Tanguy.

“Ele morreu na noite de segunda-feira, ainda a fumar o seu cachimbo que se recusava a deixar, e explicou que o seu suicídio tinha sido completamente deliberado”, conta Émile Bernard na carta a Albert Aurier. O artista descreve ao amigo que a divisão onde o corpo do pintor estava a ser velado se encontrava decorada com as suas últimas telas e que a urna estava coberta com um pano branco e girassóis e dálias amarelas. “Era, como te deves lembrar, a sua cor favorita, o símbolo da luz que ele sonhava ver no coração das pessoas e também nas suas obras de arte."

O pintor relata, ainda, o pesar que tomou conta da cerimónia fúnebre. Gachet, que havia tido esperança de salvar o seu paciente, emocionou-se de tal forma que só conseguiu balbuciar uma despedida rápida. “Segundo Gachet, ele era um homem honesto e um grande artista, que só tinha dois objectivos, a humanidade e a arte.” Theo, seu irmão e companheiro de todas as horas, “esteve a chorar desalmadamente o tempo todo”, e acreditou até ao fim que Vincent resistiria. “Levou alguns momentos até que partisse e, então, encontrou a paz que não tinha encontrado na Terra”, notou numa carta à mulher, Jo.

Theodore Van Gogh viria a morrer seis meses depois, aos 33 anos, alegadamente de sífilis. Inicialmente, foi enterrado em Utrecht, na Holanda, a cerca de 80 quilómetros de Zundert, onde os dois irmãos nasceram. Aí permaneceu até 1914, data em que a família exumou o seu corpo para que pudesse ficar junto do pintor no cemitério francês.

No final dos anos 1800, Auvers-sur-Oise era uma comunidade de artistas. Vários pintores ali chegavam à procura dos conselhos e da orientação de mestres como Paul Cézanne, que trabalhara na vila durante dois anos, e Charles-François Daubigny, precursor do movimento impressionista que ali viveu. Ainda hoje aquela localidade é um capítulo imprescindível para a compreensão da vida e da obra de um dos grandes nomes da história da arte. Há 29 placas espalhadas pelas ruas com imagens dos quadros que Van Gogh pintou e dos edifícios ou paisagens que o inspiraram.

Durante o tempo que passou em Auvers-sur-Oise, Van Gogh esteve hospedado no Auberge Ravoux, onde pagava 3,5 francos por noite e partilhava quarto com o pintor holandês Anton Hirschig. A divisão, assim como os restantes aposentos da pousada, pode ser visitada pelo público; o bilhete inclui um documentário sobre a relação de Van Gogh com a vila, com o irmão Theo e com o parceiro artístico Paul Gauguin. A vila orgulha-se ainda de albergar o ateliê de Daubigny, a casa do Dr. Gachet (cuja visita é gratuita) e o seu castelo. No fundo, Auvers-sur-Oise é um postal vivo que ilustra a memória das plantações de trigo e do vibrante céu azul que se eternizaram no repertório de Van Gogh.

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