Destruir a pintura

Uma peculiar luta contra a pintura enquanto sistema pictórico codificado por um certo bom gosto cultural: The Living Wedge, de Michael Krebber.

Michael Krebber: pranchas de Windsurf transfomadas em pinturas
Fotogaleria
Michael Krebber: pranchas de Windsurf transfomadas em pinturas
Fotogaleria
Filipe Braga

Não se sabe bem dizer que tipo de pintor Michael Krebber (Colónia, Alemanha, 1954) é. Uma impossibilidade de classificação que não equivale a uma declaração do valor da sua obra, mas à constatação de as suas pinturas não se caracterizarem por nenhum tema, forma, cor ou estilo, mas têm na contínua procura e experimentação — a que o artista diz corresponder uma espécie de dandismo — a sua melhor apresentação: podem ser pequenas, grandes, estar numa parede ou assentes no chão, ser construídas a partir da fixação da tinta da superfície da tela ou compostas a partir de padrões de tecidos, podem ser retratos, paisagens ou totalmente abstractas, etc. Um ecletismo motivado pelo facto de o seu único interesse ser explorar os limites da pintura enquanto linguagem e disciplina criativa. O título da exposição, The Living Wedge [literalmente traduzido por: A Cunha Viva] diz mesmo isso: a pintura de Krebber é encarada como aquele elemento que impede uma porta de ser fechada e se assume como uma força de atrito, mas também serve, se bem afiada, para abrir grandes blocos de madeira ou pedra, entre muitos outros sentidos todos eles muito convenientes a estas pinturas inquietas.

A exposição apresentada em Serralves, que viaja depois para o Kunsthalle de Berna, é a primeira exposição do artista em Portugal e uma das suas principais retrospectivas e reúne cerca de 100 obras feitas entre 1986 (data em que Krebber considera ter feito a sua primeira pintura) prolongando-se até 2015 e a um conjunto de trabalhos feitos a partir de pranchas de Windsurf que o artista re-organiza e transforma em pinturas.

Este conjunto tão significativo e variado serve simultaneamente o propósito de construir uma compreensão sólida e informada do percurso que este artista tem vindo a desenvolver, mostrando como se trata de um pintor essencial para a discussão do que é a pintura contemporânea. Mas também é desafia as convenções museológicas e curatoriais acerca do que uma exposição retrospectiva deve ser através de uma estratégia de fuga aos lugares comuns celebratórios e laudatórios que costuma caracterizar este tipo de apresentação. A ambição é estabelecer um percurso através dos trabalhos de Krebber que mostrem o potencial crítico detido por estas obras à data da sua concretização e não contribuir para a consolidação de uma posição bem-sucedida no mundo da arte: dúvidas, erros e desvio são apresentados como elementos incontornáveis destas obras as quais devem ser encaradas como uma importante discussão, sem termo à vista, acerca das possibilidades e fracassos da pintura.

Não está em causa um movimento nostálgico, mas tentar mostrar as obras de Krebber como posições críticas que fogem de todas as formas de estabilização ou cristalização, encontrando nos equilíbrios, sempre precários, entre diferentes sistemas de representação pictórica o seu lugar natural. Como o pintor declarou numa entrevista: I have not yet finished my sentence! I am still fiddling around [ Ainda não terminei a minha frase! Continuo a brincar] (entrevista a Ruairiadh O’Connell, Mousse Magazine, Issue #25).

Partindo destes princípios, a exposição põe à prova a ideia de estilo dominante e assume as pinturas de Krebber enquanto protagonistas de uma peculiar luta contra a pintura enquanto sistema pictórico codificado por um certo bom gosto cultural. E o artista surge como um vampiro – sugestão dada por um notável grupo de pinturas, Washing Machine (2003), Silverscreen (The New Yorker) (2003), pousadas no chão com um cartaz publicitário da exposição deixado no topo onde se pode ver a caricatura de um vampiro que é o próprio artista. Tal como os vampiros se alimentam do sangue dos outros que circulam à sua volta, Krebber sugou o sangue de todas as modalidades pictóricas sem se fixar em nenhuma e deve ser entendido como pós-artista: ele é pós-moderno, pós-representação, pós-dandy, pós-pós. Cada trabalho não só convoca essa história de destruição, como se constitui como o instrumento de destruição a lembrar o mote que o filósofo Wittgenstein escolheu para si: I destroy, I destroy, I destroy. E destruir é para este pintor a única forma de criar espaço livre para poder pensar, agir, pintar.

Não se trata de destruição cega, mas de uma forma de tornar a pintura lugar de dúvida e de permanentemente questionamento das fronteiras assumidas por um certo cânone pictórico. E é neste contexto que podemos dizer tratarem-se de pinturas híbridas entre muitas coisas, muitos géneros, muitas energias: estão entre o abstracto, o expressionista, o naturalista, o conceptual, etc. O que faz com que a exposição seja não só acerca das possibilidades da pintura, mas também sobre o lugar do fracasso como ingrediente da prática artística. Fracasso este com papel determinante porque relembra a maneira como cada obra é uma história de acidentes, contingências e erros, e que é deste material, a que Krebber chama mau material, que se faz a pintura. Não se trata de retórica, mas de entender que as obras de arte não contam só histórias bem sucedidas, mas também falam de acidentes e fracassos. Por isso, cada pintura é entendida como elemento provisório pertencente a uma obra ainda por vir: tal como aquelas telas que Krebber decide deixar pousadas no chão e encostadas à parede, aparentando estar num lugar provisório e disponíveis para futuras posições, rearranjos, leituras, experiências.

Sugerir correcção
Comentar