Viagem à volta de um livro

Numa biblioteca universitária, Pedro Calapez trabalha sobre as viagens do espírito.

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Um dos seis desenhos (Em volta) a acrílico e pastel de óleo
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Um dos seis desenhos (Em volta) a acrílico e pastel de óleo

Tudo nasceu de um convite feito por José Moura, professor e investigador na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova, para que Pedro Calapez realizasse uma individual nas instalações da biblioteca do campus. Porque já imaginava este projecto há tempos, e porque o local parecia totalmente adequado ao mesmo, Calapez partiu do livro de Xavier de Maistre, Viagem à volta do meu quarto, e concretizou a exposição Em volta de, inaugurada esta semana.

Para se perceber o processo de trabalho do artista é, contudo, necessário que voltemos ao livro mencionado. De Maistre, depois de um duelo (que ganhou), foi preso e condenado a permanecer no seu quarto durante seis semanas. Foi deste confinamento forçado que surgiu o pequeno volume, em finais do século XVIII, que parte da descrição minuciosa do aposento, feita ao jeito de um périplo de descoberta dos mais ínfimos pormenores da mobília e das paredes, para se desdobrar por viagens imaginárias e fantásticas, apenas possíveis na imaginação do seu autor.

Na linha de Sterne, Swift e, porque não, do Voltaire de Cândido, todos seus contemporâneos, de Maistre criou uma obra que rapidamente conheceu o sucesso na Europa culta da época; mas que, de certo modo, também anuncia a modernidade, por enfatizar o eu, a imaginação, o papel do autor.

De Maistre era também um pintor esforçado e honesto, e este talento diversificado não deixa por certo de se reflectir na qualidade imagética que as suas descrições possuem. Pedro Calapez construiu um texto, publicado no catálogo, onde entretece frases do escritor com outras, da sua própria autoria, que reforçam este lado representativo do texto do livro. Quando De Maistre percebe que “este retrato olha sempre para mim, seja qual for o sítio do quarto em que me encontro”, Calapez esclarece que “A tinta a secar escurece o horizonte”. O nexo entre as duas frases é automaticamente criado por quem lê, quem vê a exposição, quem ouve declamar o texto. Ao eu do escritor e do pintor acrescenta-se o eu do espectador.

A exposição é composta por três tipos de peças. O primeiro, talvez o mais surpreendente de todos, consiste na recriação do desenho do quarto através de perfis metálicos muito leves. Intitulada Chão, distingue-se nitidamente o contorno de uma sala vazia, de cadeiras, uma mesa e uma cama no seu exterior. No chão da sala, há uma tela impressa com um emaranhado de tiras a cinza, que evocam um percurso a pé labiríntico pelo aposento. Esta peça estabelece na realidade uma ponte com outras bem mais antigas, como por exemplo os tapetes de tijolo não vidrado sobre os quais Calapez inscrevia um desenho. É uma peça de chão, um rebatimento unicamente conceptual da pintura e do desenho que vemos nas paredes, já que nada aqui reproduz os traços apresentados nessas peças.

Numa das paredes está o segundo tipo de peças, seis desenhos (Em volta) a acrílico e pastel de óleo mostram também o desenho fino e balbuciante de um percurso entre formas fechadas. Balbuciante significa aqui uma qualidade primordial, quase como aquela em que um desenho automático, feito impulsivamente, pode ostentar. Percebe-se que existe um pensamento sobre a ligação próxima entre a mão e o traço desenhado, e neste pensamento cabe também a lembrança da imaginação de De Maistre e do quanto o seu registo consistia numa novidade na época em que o escritor vivia.

Finalmente, o terceiro, noutra parede: 24 badges é um conjunto de outras tantas peças em alumínio recortado, de formas simétricas, pintadas a partir do centro para as margens superior e inferior. Dito de outra forma, são pinturas que partem de uma citação da paisagem, formada por uma linha do horizonte que separa a terra de um céu, e da cor, elemento sem o qual, historicamente, a pintura não existe.

Deste modo, há uma série de estórias que se podem inventar a partir do livro de Xavier de Maistre. Não apenas aquelas que ele próprio imaginou no quarto em que estava confinado, mas todas as outras que o leitor, e neste caso o artista-leitor, criou. Claro que, numa obra de arte contemporânea, o espectador é sempre chamado a participar e completar este processo, que no fundo é ele próprio, também uma viagem pela imagem. Já como sucedia  em Viagem à volta do meu quarto – e quantas outras viagens contadas, por Homero ou Camões, por exemplo -, o mais importante é o viajar. Muito mais do que o chegar a qualquer lado.

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