David Grachat, um talento à prova de água

O terceiro capítulo do nadador da GesLoures nos Jogos Paralímpicos mistura sacrifício, compromisso e ambição em doses generosas. Atrás de si, há todo um passado de respeito na cena internacional e uma “mini-máquina” de apoio incondicional. À sua frente há uma esperança sem limites nos 400m livres.

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David toca finalmente na parede e ouve a notícia ainda com mais de metade do corpo submerso: “Fizeste 4m25s”. Tira os óculos, apressado, remove a touca de uma assentada e levanta o braço direito em sinal de vitória. “Uau! Fogo…”. É uma reacção que ecoa no interior do Complexo de Piscinas de Rio Maior e uma pista sólida de que está a nadar na direcção certa, rumo ao pico de forma e a mais uma final nos Jogos Paralímpicos. Os 400m livres são a distância-fétiche do recordista nacional da classe S9 e a aposta de uma vida que quase desde o berço tem sido cumprida no meio aquático. A água, essa força libertadora que para o atleta da GesLoures é mais do que um instrumento de trabalho: é uma aliada.

Um dia no calendário de David Grachat é um dia preenchido. Independentemente do contexto, não foge muito deste padrão, ao qual durante o ano lectivo se acrescenta o horário académico: um treino matinal (normalmente de duas horas), 60 minutos de ginásio, banho, almoço, massagem, descanso ligeiro, uma nova sessão de duas horas na piscina, jantar e o período de sono que se impõe para poder recomeçar o ciclo, um pouco antes de o sol regressar. Foi assim no início de Agosto, quando estagiou na Serra Nevada, e foi assim no final do mês, quando se concentrou no Centro de Alto Rendimento de Rio Maior, integrado na comitiva que vai representar a natação adaptada portuguesa no Rio de Janeiro. Tem sido quase sempre assim, na verdade, desde que a modalidade deixou de ser uma simples ocupação para ascender ao estatuto de paixão.

Ainda está fresco na memória aquele que o nadador apelida de “momento de viragem” numa carreira que começou quase a contragosto. “Para ser sincero, eu nem gostava muito de natação, até que chegaram os Paralímpicos de Atenas, em 2004, e nesse ano fiz um tempo-canhão na Póvoa de Varzim, nos 400m. Não estava nada à espera e fiz mínimos para os Jogos. Só que não sabia que já tinham passado duas semanas do prazo [para atingir os mínimos] e fiquei de fora. Isso deixou-me de rastos”, admite. Um sentimento, de resto, intensificado pela voracidade dos 17 anos: “Estava a ver os meus colegas pela televisão a irem embora e eu em casa, a chorar. Custou-me imenso, mas depois pensei: ‘Se fiz os mínimos para os Jogos, daqui a quatro anos posso estar lá’”. Pensou bem. Quatro anos depois estava mesmo lá, em Pequim.

Subia o pano sobre a aventura paralímpica de David Grachat. Na China, na primeira participação, foi sexto nos 100m livres (57,55s) e falhou a final nos 50m livres (26,77s). Ainda não tinha chegado o momento de se aplicar na sua prova favorita. Um ciclo olímpico volvido e o cenário mudou. Ficou de fora das finais de velocidade em Londres mas surgiu na discussão das medalhas nos 400m livres: terceiro na eliminatória, sexto na final, com 4m21,94s, um recorde de Portugal que vigora até à data.

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“A minha distância de eleição são os 400m. Não sou propriamente rápido e até deveria ser, porque sou um atleta alto. Aqui costuma dizer-se que quem não tem mão ou braço, vai a provas de 100m ou 50m, quem não tem pernas vai para provas mais longas. E eu contrario um pouco essa teoria. Aliás, em 2015 a final [do Campeonato do Mundo] era composta por atletas sem pernas e por mim, sem uma mão”, expõe, entre sorrisos, um nadador para quem a malformação congénita que comporta no braço esquerdo tem sido, mais do que um handicap, uma oportunidade para forçar os seus limites.

David Grachat é assim – de trato fácil, aberto ao diálogo e suficientemente extrovertido para convocar a atenção e a empatia dos que o rodeiam. Quando o encontrámos, ao final da manhã de um dos longos dias de preparação e recolhimento em Rio Maior, estava tão descontraído como nos momentos pré-competição. Antes de almoço, desfiou uma boa parte do novelo com que tem tricotado uma carreira de alto nível, sem se deter nos nós que vão surgindo pelo caminho.

Voltemos um pouco atrás para perceber como tudo começou. “Os meus pais puseram-me desde muito cedo a nadar, a conselho do pediatra, porque para além de não ter a mão, tenho uma atrofia do lado esquerdo do tronco e, para não haver grandes discrepâncias e desequilíbrios, foi sugerida a natação. Desde o início que gostei muito de água, mas nem gostava muito da natação”, reforça. Por essa altura, era o futebol que lhe preenchia o imaginário e foi no CF de Santa Iria que se atreveu a tentar a sorte, mas haveria de pendurar as chuteiras logo no 7.º ano de escolaridade. “Portei-me mal na escola e a minha mãe tirou-me”. Ruía o sonho de um dia vestir, no relvado do Estádio de Alvalade, a camisola do Sporting, justamente o clube pelo qual se iniciou nas piscinas, aos dois anos.

Ficava claro que se havia compromisso inegociável, era com a natação. E cedo se tornou cristalino que David Grachat estava talhado para mergulhar de cabeça no desafio. Em 1992, a inauguração do complexo da GesLoures fê-lo mudar de habitat, também por uma questão de proximidade geográfica, abrindo-lhe as portas de uma casa que ainda hoje é a sua. No novo clube, foi precocemente arrastado para a competição, quando tinha apenas 10 anos, mas essa etapa não o impediu de se propulsionar para a cena internacional. Estava dado o tiro de partida para um percurso de crescimento contínuo e que não tardou a dar frutos.

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“Em 2006, treinei-me para os 400m, mas não me saíram nada bem. Saíram-me dois recordes europeus aos 50m e aos 100m. A partir daí, comecei a tomar o gosto pela modalidade, a treinar para aquelas provas, os 400m, os 100m e os 50m. Nessa tal competição [o Campeonato do Mundo, realizado em Durban, na África do Sul], fui quarto classificado e bati o recorde europeu de manhã e repeti-o à tarde [50m]. Dois dias depois, voltei a fazê-lo aos 100 livres, de manhã e depois de tarde. E aí pensei: ‘Eu estou talhado para isto. Nasci para a natação’”.

Deve ter sido o mesmo que pensou Carlos Mota quando começou a trabalhar com o nadador natural de Santa Iria da Azóia. O currículo competitivo de David Grachat confunde-se com o do treinador, mas a ligação que os une vai muito além dos quilómetros percorridos e dos tempos cronometrados. É uma certeza que se sente na forma quase intuitiva como comunicam, no intercâmbio dentro e fora da realidade do treino. No orgulho que perpassa pelas palavras do “mentor” – a expressão é do próprio atleta – quando lhe perguntamos qual a margem de manobra para melhorar ainda mais as actuais marcas.

Que peso tem, então, Carlos Mota no quotidiano de David? “Costumo dizer que é o meu segundo pai. Quase metade da vida dele foi passada ao meu lado, eu estou com ele há 16 anos. Aprendemos imenso um com o outro, ele foi sempre acompanhando a minha evolução e isso tem sido gratificante”. É nestas alturas que David, sempre ponderado no discurso, se deixa ir um pouco mais. Mas nem era preciso dizê-lo com todas as letras, a cumplicidade é algo que salta à vista. “Ele é uma fonte de inspiração. Um dia gostava de dizer que já fui a quatro Jogos, e a caminho dos quintos, como treinador. Essa é uma ambição que também tenho para a minha vida”.

A cadência maquinal de braçada de David Grachat deixa a água enrugada à sua passagem. No exacto momento em que perde o contacto com o bloco de saída, tornam-se um só. Ele e a água, em simbiose perfeita. A pista 6 do Complexo de Rio Maior está nesta tarde por sua conta, assim como os corredores do lado estão entregues aos colegas de selecção - Joana Calado, Simone Fragoso, Nelson Lopes e, ficou a saber-se nesse mesmo dia, David Carreira. Ele, que esteve em suspenso e a treinar-se às escuras, beneficiou de uma vaga de última hora e vai também ver o seu esforço compensado nas águas do Rio de Janeiro.

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A satisfação é evidente entre os membros da equipa e esse estado de espírito limita-se a traduzir o verdadeiro ambiente paralímpico. No exacto momento da competição, as amizades ficam em suspenso, mas tudo regressa à normalidade mal o cronómetro deixa de trabalhar. O exemplo escolhido por David para ilustrar este clima de camaradagem é elucidativo: “Há uma história engraçada… Eu há muitos anos que perseguia uma medalha no Mundial. Andava sempre a bater no quarto lugar, até que chegou 2015 [em Glasgow] e consegui o terceiro lugar. Aquela piscina explodiu de alegria por me ver a ganhar uma medalha. Toda a gente a dar-me os parabéns, os treinadores brasileiros a atirarem o meu treinador ao ar, os speakers a darem atenção à minha chegada. Isso não tem explicação”.  

Nesse mesmo ano, assegurou os mínimos para os Jogos do Rio nos 400m e nos 50m livres, o que significa que pôde começar a gerir e a planear o “assalto” às Paralimpíadas com maior antecedência. Manteve o programa de preparação e a rotina de viajar para o retiro da Serra Nevada, um refúgio especial. “Eu gosto muito de lá ir. De 2008 até hoje, estive lá 12 vezes. Dou-me melhor com a ida à Serra Nevada duas vezes por ano: estou lá 21 dias, o mínimo aceitável, e nesses 21 dias não temos praticamente descanso nenhum. Só domingo à tarde é que tenho uma folguinha para descansar. Depois, a falta de ar e o facto de termos sempre a boca seca... Aquilo é duro”, descreve.

Duro como os adversários que vai encontrar dentro de dias [compete a 9, a 12 e a 13 de Setembro]. Quando olha para a concorrência que vai enfrentar na prova mais longa, aquela em que mais aspirações alimenta, não hesita em apontar como favorito o australiano Brenden Hall, detentor da melhor marca do ano (4m12,51s), logo seguido do italiano Federico Morlacchi (4m19,28s). Se tudo correr dentro da normalidade, o terceiro lugar ficará relativamente em aberto, uma discussão para ser mantida entre o representante português (4m26,81s em 2016), um britânico e um croata. “Espero alcançar um grande resultado, ficar entre os cinco primeiros do mundo, porque tenho sido sempre sexto. Com o tempo que quero atingir, vou estar ali a lutar pela medalha ”, reforça.

É além-fronteiras, e nestas alturas, que David se testa a si próprio. É este o estímulo de que precisa para ir mais além e o nadador da GesLoures não tem problemas em admitir que se debate com um sério problema de concorrência interna. Ou falta dela. “Deixa-me triste o facto de não ter competição. Chego às provas nacionais e sinto-me completamente relaxado. Sirvo-me das provas nacionais praticamente como um treino e não gostava que isso acontecesse”, lamenta, antes de traçar um diagnóstico “generalizado”: “Os miúdos hoje em dia querem, com pouco, resultados muito rápidos”.

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David também já foi um miúdo que teve de “bater com a cabeça” para perceber o preço do sucesso. E sempre que o esquecia, contava com a sombra dos pais para o repor no caminho da razão, fosse na piscina ou na sala de aulas. “Eu era muito irrequieto [risos], estava sempre a andar de um lado para o outro, levei muitos puxões de orelhas. A minha mãe até ofereceu uma régua de madeira à professora, que passou a chamar-se Mariana [a régua herdou o nome da mãe], que era para quando me portasse mal…”.

A mãe, esse pilar insubstituível que nunca lhe falhou, essa voz da consciência que tantas vezes serviu de campainha quando o corpo pedia descanso. “Hoje tenho 29 anos e a minha mãe ainda acorda de manhã para me fazer o pequeno-almoço para eu ir treinar. Isto não tem preço. Tanto os meus pais como eu estamos comprometidos com o desporto e somos um só”. E o que significa para a família, namorada incluída, um bom resultado na piscina? “Cada coisa que eu conquisto, para eles é como se ganhasse o Campeonato da Europa de futebol”.

David está a terminar o treino vespertino em Rio Maior, depois de já ter trocado de fato de banho e de ter concluído um exigente conjunto de exercícios que apelam à coordenação e à resistência. A seguir passará o corpo por água – uma expressão que soa a redundância quando falamos de um nadador – e recolherá ao quarto, antes de descer para jantar. O ciclo repete-se, dia após dia, sempre com o Rio de Janeiro e a recompensa de um recinto composto como nenhum outro no horizonte.

Longe vão os tempos em que, lançado pela primeira vez a uma competição numa piscina de 50m, o pequeno David passou todo o tempo de cabeça de fora à procura do aceno dos pais nas bancadas. “E chorava porque não os via”, acrescenta. Ou em que viu os calções fugirem instantes depois de ter mergulhado. Ou em que se confundiu dentro de água e começou a nadar bruços numa prova de crawl, acabando por ser desclassificado. Essa foi a fase da iniciação, uma fase diametralmente oposta à que hoje atravessa.

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As presenças em Pequim e Londres oferecem-lhe um balão de confiança extra para encarar o Rio. Tem experiência, está preparado e devidamente motivado, por muito que discorde da actual política de distribuição das bolsas desportivas. “Eu até posso concordar que a bolsa dos atletas olímpicos, que têm sempre de fazer as eliminatórias, as meias-finais e a final, seja um pouco maior que a nossa, porque eles têm mais atletas em competição, mas não concordo com esta disparidade. Devia haver uma aproximação. Eu já ficaria muito contente se a nossa bolsa nível A fosse a dos olímpicos nível B”.

Esta discussão faz ainda mais sentido quando olhamos para Espanha e percebemos que os atletas paralímpicos se dedicam em exclusivo ao desporto nos dois últimos anos de treino para os Jogos. Ou quando subimos no mapa e encontramos na Holanda um país que prepara o evento em regime de exclusividade numa janela de quatro anos, com estágios permanentes em países como a Alemanha, a Turquia e, claro, Portugal. O tema é recorrente, é verdade, mas não pode ser de outra forma quando os competidores se lançam de “blocos de partida” tão diferentes.

David Realista Grachat, eis o nome que vai surgir ao lado da bandeira portuguesa nas provas da classe S9. Um apelido pouco lusófono, mesmo para os brasileiros habituados a derivações invulgares infligidas por interpretações cruzadas no momento do registo. Nesse particular, há um ponto de contacto extra nesta história, uma ponte mais firme entre Portugal e Brasil. O que deveria ter sido Crachat, com ‘C’, transformou-se, por uma falha de comunicação, em Grachat, com ‘G’. “Foi um erro do notário”. Um erro que estará bem visível nos painéis do Estádio Aquático do Rio e debaixo dos olhares do mundo inteiro.

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