Como é o céu contemporâneo

O cardeal-patriarca inaugurou o tecto da Igreja de Santa Isabel, em Lisboa. A propósito da pintura de Michael Biberstein, lembrou que “o céu é mais antigo do que o século XVIII e mais moderno do que o século XXI”.

Fotogaleria
O projecto Um Céu para Santa Isabel começou há sete anos. DR
Fotogaleria
DR
Fotogaleria
Um Céu para Santa Isabel foi inaugurado esta terça-feira pelo cardeal-patriarca DR
Fotogaleria
DR
Fotogaleria
DR

Não sabemos o que o pintor Michael Biberstein acharia deste céu que fez para a Igreja de Santa Isabel, em Lisboa. Sabemos que o imaginava como “uma jubilante abertura para um céu cósmico”, como escreveu antes de morrer subitamente em 2013, a meio do projecto Um Céu para Santa Isabel, que é agora o novo tecto de uma das mais conhecidas paróquias de Lisboa e foi inaugurado ao final da tarde desta terça-feira pelo cardeal-patriarca.

O que acha deste céu? O que significa este céu contemporâneo? – perguntamos a D. Manuel Clemente quando chega à igreja da rua Saraiva de Carvalho para a cerimónia. “O céu tem um significado pleno. Este pela maneira como está pintado é um céu especialmente translúcido e daí que faça adivinhar muita coisa, que é a vantagem de ser um céu. É um céu a abrir-se.” O cardeal-patriarca gosta do resultado: “É algo que fica dentro da tradição da nossa pintura religiosa: reparemos que em muitas igrejas há o céu pintado no tecto com mais ou menos símbolos religiosos explícitos. Mas creio que o céu, só por si, já é um símbolo religioso muito convincente.” Depois, quando lhe perguntam o que acha de um céu do século XXI num edifício do século XVIII, D. Manuel Clemente sorri e conclui: “O céu é mais antigo do que o século XVIII e mais moderno do que o século XXI."

É a véspera da inauguração e o padre José Manuel Pereira de Almeida está sentado num dos bancos da igreja, debaixo do novo tecto pintado, a explicar-nos o que é que pode significar este céu contemporâneo para a iconografia cristã. “Este céu fala de um céu aberto. Há a convicção na tradição cristã de que em Jesus o céu se abre: Deus deixa de estar do lado de lá para viver connosco. Em São João, diz-se que montou a tenda no nosso acampamento. O céu passa a ser um lugar de comunhão em vez de uma barreira.” O céu de Santa Isabel fala, então, “da relação de comunhão com Deus e com todos”.

O que é um céu? ­– perguntamos também a Ana Nobre de Gusmão, a escritora e viúva do artista suíço que chegou a Portugal nos anos 70. “Não tenho resposta para isso. É o que está por cima das nossas cabeças. Para mim, este passou a ser o céu do Mike. Ele não era religioso, muito menos cristão, mas acreditava numa transcendência qualquer, um tipo de energia. Qualquer pessoa que esteja aqui e olhe para cima faz uma leitura muito pessoal do que o céu representa para si. Católica ou não.” Sobre o que seria o céu de Michael Biberstein, Ana Nobre de Gusmão diz que não tem dúvidas de que seria outra coisa. “É um bocado como escrever um livro. Só quando vai para a editora é que já não se pode trabalhar.”

O projecto Um Céu para Santa Isabel começou há sete anos, em 2009, quando o arquitecto João Appleton juntou uma série de pontas: a vontade do prior de Santa Isabel em restaurar a igreja; a do conservador-restaurador Nuno Proença, contactado pelo padre, em fazer mais do que uma operação cosmética; e um convite dirigido à sua irmã, a galerista Vera Appleton, para apresentar uma exposição na Trienal de Arquitectura, feito pelo curador Delfim Sardo. “Foi uma coisa engraçada esse contacto duplo. Disse à Vera que seria uma coisa espectacular fazer uma maqueta enorme, pedir ao Mike para pintar o tecto e ver se pegava.” Era preciso arranjar apoios financeiros para a recuperação de toda a estrutura, além de montar o projecto artístico.

Foto
dr

O padre de Santa Isabel foi ver uma exposição de Biberstein que estava na Vera Appleton, uma galeria que faz projectos especiais com artistas de outras galerias, neste caso da galeria Cristina Guerra. “De todos os artistas que trabalhavam em Portugal na altura era a escolha evidente”, afirma João Appleton. “Era preciso algo que destapasse a igreja”, cujo tecto tinha sido pintado de cinzento escuro numa intervenção dos anos 60.

Michael Biberstein gostava também de citar o trabalho do pintor veneziano Tiepolo, o mestre dos céus infinitos barrocos, a propósito da necessidade de retirar à igreja essa “sombria tampa cinzenta” e substituí-la por “um céu aberto”, tornando o espaço religioso “mais apelativo à meditação”, escreveu nesse texto de 2010.

“Foi incrível a forma como toda a gente aderiu ao projecto”, conta o arquitecto, acrescentando que a exposição para a Trienal de Arquitectura se materializou numa maqueta de estudo à escala 1/8 com a pintura do tecto já ensaiada pelo artista. “Ele pintou o tecto da maqueta mas continuou a pensar naquilo. Disse-me na última exposição na Cristina Guerra [em 2012] que aquilo era tudo o tecto de Santa Isabel. Estava muito focado.”

Depois de alguns contratempos, considerou-se que seria mais fácil começar o restauro da igreja pelo arranjo da cobertura e pela pintura do tecto, uma vez que esse era o projecto mais susceptível de conseguir apoios. “Era nessa fase que estávamos quando o Mike morreu. No primeiro momento achei que não tínhamos possibilidade nenhuma. Foi um soco no estômago. Íamos pintar o quê? Íamos pintar como ele?”.

Foi nessa fase que se juntou o artista Julião Sarmento, um amigo de Biberstein que chegou a dividir o atelier com ele, e se aproximaram Delfim Sardo, Ana Nobre de Gusmão e Cristina Guerra. Há uma redefinição do projecto: é decidido que o estudo do artista será ampliado, reproduzido e executado no tecto da Igreja. Poucos meses depois, junta-se a Galeria Jeanne Bucher-Jaeger, de Paris, e dois anos depois é assinado um protocolo de financiamento com a Santa Casa de Misericórdia, montando-se um orçamento para esta primeira fase de 400 mil euros.

As cores do céu

Às nove da manhã, a luz do sol que entra pelo óculo da fachada de Santa Isabel já está bem lançada para a frente, em direcção ao altar, e é fácil apreciar os trompe l’oeil que decoram as janelas. Mas só com a luz depois do meio-dia, diz o conservador-restaurador Nuno Proença, da empresa Nova Conservação, é que a inclinação das sombras verdadeiras e as das pinturas das paredes, que provocam uma ilusão óptica tridimensional, acertam o passo com mais exactidão.

Nuno Proença está a olhar para o tecto e explica que nos últimos três meses chegaram a trabalhar 12 pessoas para refazer o trompe l’oeil com jogos de falsos marmoreados que corresponde ao segundo andar das paredes de Santa Isabel, onde estão situadas as janelas, para dar um melhor enquadramento ao céu de Michael Biberstein. “O objectivo foi fazer a ligação do tecto ao resto da nave da igreja.” O resto do restauro, ao nível das pinturas das paredes do primeiro piso, ficará para uma segunda fase, marcada para Setembro.

Foto
Durante três meses, quatro pintores da Factum Arte, uma empresa especializada em cópias fac-símile de obras de arte sedeada em Madrid, executaram a pintura que estava na maqueta Paulo Catrica

As cores que Nuno Proença vê no tecto são as mesmas que estão nas paredes. “O tecto está perfeitamente ancorado no programa estético da igreja. O Michael que trabalhava com as suas cores amarra aqui o seu trabalho ao existente. Os magentas e os ocres coexistem em ambas as obras. Ele vai buscar estas cores que vemos agora porque imaginou o que seriam após a limpeza.”

Depois de Michael Biberstein morrer, foi necessário desmontar o seu processo criativo com a ajuda de documentação vária, desde vídeos em que o filmaram a trabalhar até à conversa com amigos sobre a sua técnica e expressão artística. Durante três meses, quatro pintores da Factum Arte, uma empresa especializada em cópias fac-símile de obras de arte sedeada em Madrid, executaram a pintura que estava na maqueta. “A partir da fixação de alguns pontos de transposição do desenho, os pintores conseguiram expandir a pintura. Criaram quase uma cartografia.” No fundo, comenta Nuno Proença, conservação e restauro também é isso.

Para o conservador-restaurador, o céu de Biberstein é ligeiro. “Do lado sul-nascente é um céu muito movimentado e algo expectante. Depois temos esta diagonal, que vai ficando mais marcada. Esta instabilidade está a dizer-nos para sermos seguros mas não demasiado. Depois temos a serenidade da capela-mor e da elevação do espírito. O céu começa a abrir-se no sentido do arco triunfal, o que está de acordo com as pinturas em trompe l’oeil que aqui já não mostram sombras.”

São sucessivas camadas de tinta acrílica, muito diluída, que dão origem a verdadeiras velaturas, uma grande transparência de cores numa superfície texturada. “Na pintura de Mike nem sempre se consegue focar um plano e com o nosso movimento as cores vão mudando.”

João Appleton diz que o grupo ainda foi todo a Madrid, onde a maqueta foi inteiramente digitalizada pela Factum Arte, para ver se uma impressão gigante resultava. “Mas ficava tudo muito achatado.” O arquitecto conta que Julião Sarmento insistiu muito para que o projecto se apoiasse na maqueta e não se pusessem a inventar outra coisa. “A margem dos executantes está na mudança de escala e claro que tiveram que tomar decisões, mas compreenderam completamente a cabeça do artista.”

Jordi Garcia Pons, da Factum Arte, explica que aplicaram a tinta através de compressores ou com aerógrafos. E não esteve a contar as camadas, mas talvez tenham sido 30 em algumas zonas.

Vera Appleton sabe que “é muito delicado” continuar uma obra quando um artista morre. “Foi o assumir de uma cópia perfeita de um estudo que ele fez. Pensámos sempre que seria outra coisa se fosse o Mike, mas lá está o céu e estou superfeliz.”

Nesta terça-feira, antes da missa das sete, celebrada por D. Manuel Clemente, há quem olhe mais para o chão do que para o tecto. Maria Clara Botelho voltou às limpezas em Santa Isabel para tentar encerar como deve ser uma madeira com sete meses de obras em cima. E o tecto? “Quando as luzes estão acesas fica mais azul. Fica lindo.”

A ela não a apoquenta nada, como a algumas pessoas que vão chegando, uma pequena nuvem cinzenta que se pode descobrir a meio da pintura ao lado de um azul mais celeste.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários