Como se garante que o órgão transplantado não é rejeitado?

Só com uma relação de dupla responsabilização a longo prazo, entre “transplantado e transplantador”, se optimiza a gestão deste bem escasso, que é um órgão sólido para transplante.

A transplantação de um órgão num receptor desencadeia, neste último, uma reacção imunitária potente, em resposta ao contacto com células e com proteínas que são estranhas ao hospedeiro.

Esta reacção imunitária é fundamental para assegurar a nossa sobrevivência, permitindo-nos, diariamente, lutar contra infecções ameaçadoras e destruir rapidamente células tumorais que resultam de erros do metabolismo.

Quando se realiza um transplante de um órgão sólido (rim, pâncreas, fígado, coração, pulmão, etc.), necessitamos de “enganar” o nosso sistema imunológico de defesa, “desviando a sua atenção” ou induzindo-lhe um “adormecimento”, para termos sucesso e evitarmos a rejeição.

Facilmente se entende que este é um equilíbrio muito instável, que passa a ser vivido pelo recetor do transplante e pela sua equipa terapêutica, para o resto da vida do recipiente (ou pelo menos enquanto tiver o órgão funcionante). Se a imunossupressão é insuficiente desenvolvem-se quadros de rejeição aguda ou crónica que levam à perda dos enxertos. Mas, pelo contrário, se a imunossupressão é exagerada, o receptor corre riscos muito aumentados de desenvolver infecções ou tumores, que põem em risco a sua sobrevivência.

Temos de reconhecer, que a história da transplantação de orgãos é dos capítulos mais apaixonantes da medicina moderna.

Os progressos notáveis da imunossupressão, com o desenvolvimento de fármacos imunossupressores progressivamente mais específicos, com acções coordenadas e potenciadas tem-nos permitido oferecer a possibilidade de transplantação a populações que previamente estavam arredadas desta alternativa terapêutica. Na verdade, estamos actualmente a transplantar populações muito mais doentes (exemplo doentes diabéticos, doentes com mais de 70 anos, etc.) sem comprometer o sucesso e sem aumentar significativamente os riscos dos doentes transplantados.

Estes resultados só são possíveis, mediante o recurso a fármacos, frequentemente utilizados em associação, que bloqueiam as respostas imunitárias que conduzem à rejeição mas não inibem as células que atuam na defesa contra as infecções e as células tumorais.

Naturalmente que são múltiplos os factores que contribuem para o bom e longo funcionamento de um órgão transplantado, nomeadamente: a idade do dador, a idade do receptor, a “qualidade” do dador (ex: hipertenso, fumador, etc.), se se tratou de um “dador vivo” ou de um “dador cadáver”, a existência de outras doenças no receptor a quando do transplante, as complicações infecciosas, etc.

Mas em todas as séries de transplantados, sobressai como principal factor de risco, a rejeição aguda e/ou crónica porque, infelizmente, ao contrário do que se observa no transplante de medula, a verdadeira imunotolerância ainda não foi atingida no transplante de órgãos sólidos.

Por este motivo, a colaboração do doente, a sua motivação, rigor e disciplina na toma dos imunossupressores é fundamental, constituindo uma condição basilar aquando da avaliação pré-transplantação.

Infelizmente, (sobretudo nalguns registos Norte Americanos) a deficiente adesão do doente à medicação tem constituído um dos factores de rejeição dos órgãos transplantados. Esta é uma preocupação de todas as equipas terapêuticas dedicadas à área da transplantação, o que tem levado ao desenvolvimento de programas de motivação repetidos periodicamente, à utilização de plataformas de comunicação (exemplo: aviso por SMS da hora da medicação), à constituição de “pares de responsabilidade” (ex: casais, pares de doentes), etc.

No mesmo sentido vão as novas formulações de imunossupressores, que permitem uma única administração diária, desenvolvidos por diversos laboratórios, e que se têm associado a uma significativa redução da taxa de esquecimentos e falhas na administração dos fármacos, aumentando a adesão ao tratamento.

O receptor de um órgão sólido deve estar consciente do elevadíssimo investimento que a sociedade em que se insere faz, para lhe dar uma nova oportunidade de viver uma vida “quase” normal. Tem de ter a capacidade e a vontade de desenvolver hábitos saudáveis, de aderir à terapêutica prescrita e estar atento aos mais pequenos sinais de alarme.

Os membros da equipa terapêutica e de uma forma particular os médicos e enfermeiros que acompanham os doentes transplantados nas fases pré, per e pós transplante, têm uma responsabilidade acrescida na selecção criteriosa dos receptores e no seu acompanhamento com total disponibilidade e dedicação.

Só deste modo, e com esta relação de dupla responsabilização a longo prazo, entre “transplantado e transplantador”, se optimiza a gestão deste bem escasso, que é um órgão sólido para transplante.

Professor da Nova Medical School – Universidade Nova de Lisboa, presidente da Sociedade Portuguesa de Nefrologia

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