Gabor Király, a antiestrela das calças de treino cinzentas

Guarda-redes da Hungria é um dos jogadores mais peculiares do Euro 2016 e não é apenas por ser o mais velho a disputar a fase final do torneio. É uma espécie de negativo de Cristiano Ronaldo e costumava ter conversas de pai com José Mourinho.

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Gabor Király e as suas calças de fato de treino cinzentas, que são a sua imagem de marca REGIS DUVIGNAU/REUTERS

Gabor Király não é exactamente o protótipo da vedeta do futebol que nos habituámos a padronizar. Se o ponto de comparação for, por exemplo, Cristiano Ronaldo, o contraste de estilos é quase chocante. Ao aspecto aprumadíssimo do português, responde o guarda-redes da Hungria com uma aparência que pode confundir-se com desmazelo. Umas largas e pouco estéticas calças de fato de treino cinzentas são a sua imagem de marca entre os postes. É careca, algo rechonchudo, com cara de poucos amigos e tornou-se, em França, no mais velho jogador de sempre a participar num Europeu. Terá 40 anos e 82 dias quando defrontar Portugal, em Lyon, na próxima quarta-feira. Apelidado pela imprensa internacional como o “Pyjama Man”, o veterano internacional responde com desdém à alcunha.

“Sou um guarda-redes, não um modelo”, responde Király sempre que é questionado sobre a invulgar forma retro como se equipa para jogar: “Uso calças compridas e sempre um tamanho acima, para estar mais confortável.” Mas foi precisamente esta indumentária que o ajudou a tornar-se num ícone nos clubes por onde passou. “Tentei usar calções na Alemanha e em Inglaterra, mas não me senti confortável. Provocavam-me danos nas pernas quando [o tempo] estava gelado ou quando o campo não estava em perfeitas condições. O resultado é mais importante do que as aparências”, concluiu. Inquirido mais uma vez sobre as suas famosas calças de treino, no Estádio de Bordéus, após o triunfo sobre a Áustria (2-0) na sua estreia no Euro, não escondeu o incómodo e, com voz enfadada, retorquiu: “Próxima pergunta.”

Originalmente, Király usava calças pretas, mas um dia, em 1996, quando representava os húngaros do Haladás, não havia nenhum par limpo disponível e acabou por ser obrigado a usar as que havia, que eram cinzentas. Dentro de campo as coisas correram extraordinariamente bem, tendo a sua equipa vencido os oito jogos seguintes e evitado a descida de divisão. Estava decidido: nunca mais iria mudar de cor.

As calças cinzas transformaram-se numa superstição e ainda guarda as primeiras que usou, por mais de 100 vezes, já cheias de buracos. Esta imagem transformou-se num culto para os adeptos, que chegaram a ir para o estádio vestidos da mesma forma. E nem nos treinos usava calções, mesmo no Verão, como garante o avançado, seu companheiro de selecção, Tamás Priskin: “Não, ele nunca as despe.” As calças tornaram-se uma marca registada. Literalmente, já que recentemente lançou uma linha de vestuário no seu país.

Peculiaridades

E as peculiaridades de Király não ficam por aqui. “Ele tem muitas superstições, não apenas o ‘pijama’. Tem uma camisola de basquetebol que usa sempre: preta, com o n.º 13 [o seu número da sorte]. E outras coisas. Uma camisola com um tigre estampado [que veste por baixo da camisola oficial durante os jogos]. E usa sempre tudo isto. Podem imaginar quando estão 40 graus…”, revela o médio Zoltán Gera, entre sorrisos. Todos estes amuletos são sempre cuidadosamente arrumados na sua bagagem antes das viagens. Mas há mais: é invariavelmente o primeiro a sair da camioneta da equipa e, desde 2000, antes de cada jogo, inspira-se no tema It’s My Life, da banda americana Bon Jovi, cujo nome tem estampado no seu carro, um Mini.

O dono das redes húngaras pode não ter a projecção de muitos guarda-redes de renome internacional, mas é um herói no seu país e deixou uma forte impressão pelos clubes por onde passou. Recordista de internacionalizações (104) com a camisola principal da Hungria, o atleta arrebatou definitivamente os corações de quase todos os seus compatriotas ao ser a grande figura do play-off de acesso ao Euro 2016, frente à Noruega, especialmente na partida disputada em Oslo. Para muitos, foi um milagreiro, com meia dúzia de defesas extraordinárias. Depois da derrota caseira, por 1-0, a eliminação norueguesa seria confirmada no jogo fora, com novo desaire, por 2-1.

Desapareciam também as reservas que persistiam sobre a veterania de Gabor Király, as suas capacidades para competir ao mais alto nível e manter a titularidade na baliza da selecção, onde se estreou em 1998. A carreira profissional tinha arrancado cinco anos antes, ao serviço do Szombathelyi Haladás, clube da sua cidade natal, onde permaneceu durante quatro temporadas — e ao qual regressou na última —, antes de partir para uma longa aventura internacional. Na Alemanha, ao serviço do Hertha Berlim (1997-2004), viveu os seus maiores sucessos desportivos, que lhe renderam os títulos de melhor futebolista húngaro em 1998, 1999, 2000 e 2001.

Sucesso na Bundesliga

Na época de estreia ao serviço do Hertha (1997-98) foi nomeado o melhor guarda-redes da Bundesliga e conquistou ao serviço do clube duas Taças da Liga alemã consecutivas (2001 e 2002). Teve também exibições de nível na campanha da equipa na Liga dos Campeões, em 1999-00, quando os alemães passaram à segunda fase da prova, ficando em segundo no seu grupo, à frente do Galatasaray e do AC Milan. Não alcançariam a segunda fase de grupos da prova (que, na altura, tinha esse formato), acabando em último, atrás, nomeadamente, do FC Porto treinado, na altura, por Fernando Santos e onde brilhavam Vítor Baía, Deco e Jardel. Duas vitórias por 1-0 da equipa portuguesa acabaram por contribuir para a passagem dos “dragões” aos quartos-de-final.

Já a meio da temporada de 2003-04, Király acabaria por perder a titularidade no Hertha, com a chegada de um novo treinador, rumando a Inglaterra e ao Crystal Palace na época seguinte. A descida da equipa ao escalão inferior levou a que fosse emprestado por curto período ao Aston Villa e West Ham, antes de assinar pelo Burnley.

As coisas não correm bem e o guarda-redes acabou por regressar à Alemanha, primeiro através de um empréstimo ao Bayer Leverkusen e, depois, fixando-se no TSV 1860 Munique, na segunda Liga germânica, onde permaneceu até ao início da temporada 2014-15, antes de ser suspenso por ter abordado agressivamente um defesa-central da sua própria equipa (a quem, entre outras coisas, puxou pelo cabelos), que resolveu responsabilizar pelos golos que sofreu durante uma partida oficial. Nessa mesma época, seria contratado pelo Fulham, voltando a Inglaterra, mas no Verão seguinte, sem outros interessados, regressou à sua Szombathelyi natal, para representar, mais uma vez, o Haladás.

Em Londres, enquanto representou o Fulham, esbarrou algumas vezes com José Mourinho, quando ambos iam apoiar os respectivos filhos (que jogavam como guarda-redes) nas camadas jovens do clube. “Conversámos como dois pais. Ele é uma pessoa muito simples e agradável”, referiria mais tarde o húngaro sobre o treinador português.

No Euro 2016, Király atingiu o pico da sua carreira ao serviço de uma selecção treinada, desde Julho de 2015, pelo alemão Bernd Storck, antigo técnico adjunto do Hertha Berlim, na altura em que o guarda-redes ali começou a jogar. Tudo fará para causar boa impressão e calar as vozes mais críticas que se levantaram no seu país na véspera do torneio francês, face a algumas exibições menos conseguidas ao serviço do Haladás. E depois, logo se verá: “Vou continuar até que o corpo me peça para parar.”

A exibição frente à Áustria convenceu e nem o recente lapso com a Islândia (1-1) — num lance em que não conseguiu segurar uma bola, acabando a jogada por originar a grande penalidade que deu o golo aos nórdicos — deixou os seus companheiros de equipa cépticos. “Ele é tão carismático...”, reconhece Gera. “Não sentimos medo quando o vemos na baliza, porque sabemos que vai dar sempre o melhor. Ele já estava nesta selecção quando muitos dos jogadores mais jovens ainda eram crianças.” Na verdade, alguns ainda não tinham sequer nascido, quando Király iniciou a carreira profissional em 1993. “Ele é um herói para mim e sinto-me honrado que esteja na nossa equipa”, sublinha Priskin.

Entretanto, o guarda-redes, que tentará frustrar os atacantes portugueses em Lyon, com Ronaldo à cabeça, vai-se entediando com as abordagens da imprensa internacional, que invariavelmente tocam no mesmo tema: “Tenho usado estas calças nos últimos 20 anos e já expliquei porquê em montes de entrevistas. Estou no futebol há quase 24 anos, não me estou a estrear aqui. Mas como este é um grande torneio, as pessoas insistem, mais uma vez, com as mesmas perguntas.” O “Pyjama Man” não consegue passar desapercebido.

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