"O meu trabalho foi sendo destruído"

Luís Horta, antigo presidente da ADoP, entende que aconteceram falhas graves por parte da actual direcção do organismo e que conduziram à suspensão do laboratório de Lisboa por parte da AMA.

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Luís Horta, antigo presidente da Autoridade Antidopagem de Portugal Pedro João Maia

Há uma semana, a Agência Mundial Antidopagem (AMA) suspendeu por seis meses a acreditação do laboratório de Lisboa por atraso na entrega de resultados e falta de autonomia em relação à Autoridade Antidopagem de Portugal (ADoP). Em entrevista ao PÚBLICO, Luís Horta, antigo presidente da ADoP e actualmente consultor da Autoridade Brasileira do Controlo de Dopagem (ABCD), considera que houve falhas graves na gestão do laboratório por parte da actual direcção da ADoP. Sobre os Jogos Olímpicos, revelou que os controlos no Rio de Janeiro serão feitos de forma mais selectiva.

O laboratório de Lisboa perdeu a acreditação internacional. Na sua opinião, porque é que isto aconteceu?
Aconteceu o que não queríamos. O laboratório foi criado há 30 anos, eu estive 16 anos à frente da ADoP, mais de metade da vida do laboratório ele esteve nas minhas mãos, é muito triste o que aconteceu. Espero que se consiga resolver rapidamente o problema. A situação do laboratório deteriorou-se muito nos últimos tempos. Houve um conjunto de factores que pesou neste epílogo. Houve um erro da parte da própria ADoP no planeamento dos testes. Em 2015, foi anunciado que foram recolhidas mais mil amostras que no ano anterior e isso podia ser um facto positivo, mas a quantidade não é o mais relevante. Devia ter sido perguntado ao laboratório se conseguia cobrir esse aumento. Sei perfeitamente que o laboratório de Lisboa, com o equipamento e os recursos humanos que tem, dificilmente conseguiria analisar esse número de amostras sem pôr em causa o prazo de entrega dos resultados. O laboratório sempre teve alguns problemas com a entrega dos resultados, mas nunca se chegou à situação de ser um atraso de cinco, seis meses. Por outro lado, houve também alguns problemas relacionados com os recursos humanos. A técnica principal de EPO, a Dra. Ana Sofia Tavares, saiu do laboratório porque houve um problema de relacionamento com a actual presidência, o Dr. João Ruivo, que tinha ficado como coordenador científico interino, também teve problemas com a actual presidência. Houve também problemas com equipamentos, uma dificuldade que sempre tivemos, mas que nunca deixou de ser resolvida. Também houve da parte da AMA uma questão relacionada com a independência do laboratório em relação à ADoP, um problema que existiu desde sempre e que existe noutros países, mas sempre se conseguiu demonstrar que a independência era preservada. Alguma coisa aconteceu após a minha saída que levou a que AMA considerasse que a independência do laboratório não estava garantida.

Que consequência irá ter isto para o desporto português?
Como é lógico, o programa nacional antidopagem ficará afectado por isto. Embora possamos mandar as amostras para outro laboratório, isso custa dinheiro e, por outro lado, as amostras de sangue, as da hormona de crescimento, por exemplo, têm de estar em laboratório 48 horas após a recolha, as do passaporte biológico têm de ser colocadas em 36 horas, o que requer um grande esforço e verbas avultadas para o transporte.

Penso que estão a ser adoptadas todas as medidas para que a monitorização de todos os atletas portugueses que vão aos Jogos Olímpicos e Paralímpicos não seja posta em causa. Estamos numa altura crucial, porque são nos últimos seis meses antes do Jogos que se aumenta o número de testes.

No tempo em que esteve à frente da ADoP, houve alguma ocasião em que a AMA tenha ameaçado com esta medida?
Nunca houve. Houve problemas de algumas não conformidades. Por vezes, tivemos dificuldades em implementar alguns métodos, mas conseguimos cumprir os prazos impostos pela AMA.

Porque decidiu abandonar a ADoP em 2014?
Foi-me feito um convite pelo Governo brasileiro, estive muito tempo a pensar e fiz uma reflexão sobre onde seria mais útil. Senti que aqui seria mais útil e também tive o sentimento de que saía de Portugal com a casa arrumada. Enganei-me. As pessoas ficaram lá, o trabalho ficou lá, mas, progressivamente, o meu trabalho foi sendo destruído. Às vezes não é preciso fazer diferente, é continuar o trabalho que vinha sendo feito. Quando as pessoas tentam fazer diferente, modificar sem saber o que estão a fazer, pode acontecer o que está a acontecer neste momento.

O que encontrou no Brasil?
Muitas dificuldades. Se temos burocracia em Portugal, aqui temos burocracia ao cubo. É muito difícil trabalhar no Brasil, principalmente na administração pública. A dimensão do país é outro problema. Imagine o que é transportar amostras, ter oficiais de controlo de dopagem nos locais mais recônditos do Brasil.

Daqui a uns meses, o trabalho será redobrado. Todos os controlos dentro dos Jogos Olímpicos serão feitos pelo Comité Olímpico Internacional (COI) e pela Rio 2016, mas serão da nossa responsabilidade todos os controlos feitos fora da Aldeia Olímpica e todos os controlos às missões que vêm treinar e aclimatar-se nos meses anteriores aos Jogos. Montámos um serviço de inteligência que está a dar grandes resultados, e o COI e o Comité Paralímpico Internacional vão contar com esse serviço no sentido de fazermos uma análise de risco para sabermos onde estão os atletas suspeitos e onde devemos incrementar a nossa estratégia. Durante a competição, os controlos não serão realizados por nós, mas irei participar na área da inteligência e daremos o nosso contributo. Essa inteligência servirá para comunicarmos as suspeições que tenhamos, como também para colaborarmos no plano de controlos que sejam necessários. E todos os brasileiros que vão actuar no controlo de dopagem foram formados por nós.

As amostras serão todas analisadas no laboratório do Rio de Janeiro?
Sim. O laboratório é de última geração, muito bem concebido e equipado com o que há de melhor. Vai ter cem peritos internacionais e dois deles são portugueses.

Houve o risco de a AMA retirar a acreditação ao laboratório do Rio de Janeiro. O que estava em causa?
Isso chegou a acontecer em 2013. As instalações e os equipamentos não eram adequados e perdeu a acreditação. Eu contribuí para isso porque liderei uma comissão da AMA em 2009 numa auditoria ao laboratório. A situação degradou-se ao longo dos anos e esteve numa situação muito difícil, ao perder a acreditação a três anos dos Jogos. Mas em Maio de 2015, o laboratório tinha a acreditação plena e, neste momento, está preparado para os Jogos.

Tem uma ideia de quantas amostras serão recolhidas durante os Jogos?
Para os Jogos Olímpicos serão mais de cinco mil, para os Jogos Paralímpicos será um número inferior que ainda não está fechado.

Nem todos os atletas serão, então, controlados.
Antigamente, até estes Jogos, dizia-se sempre o mesmo: este ano vamos colectar mais amostras que nos Jogos anteriores. Tentei levar para o COI a ideia de que nem sempre mais é melhor. Felizmente que conseguimos isso, porque o que é importante é a qualidade. Temos de saber em que cesto é que vamos pôr os nossos ovos.

Nestes Jogos, em que cestos é que vão pôr-se mais ovos?
Naqueles em que a análise de risco nos diz. Neste caso, o segredo é a alma do negócio. É algo que está guardado e que evolui diariamente. Haverá um maior controlo em determinadas modalidades, determinados países e determinados atletas. Nos Jogos Pan-Americanos em 2015 seguimos essa estratégia. O número de positivos aumentou substancialmente e para substâncias que não estávamos habituados a ter. O futuro da luta antidopagem é utilizarmos essa inteligência.

O desporto russo tem sido alvo de muitas denúncias e suspensões. Já era esperado?
Sim. Sempre tivemos muitos atletas russos, do atletismo, da canoagem, do remo, a treinar em Portugal. As respectivas federações internacionais e a AMA solicitaram-nos imenso trabalho nesses atletas. Tivemos situações inimagináveis em termos de dificuldades que tivemos em realizar alguns desses controlos. Por exemplo, trocavam os quartos dos hotéis, diziam que não sabiam falar inglês, de mudarem a fisionomia cortando o cabelo, etc. Sabíamos que algo de muito estranho se passava na Rússia, mas, com a criação da RUSADA, as coisas mudaram e os atletas russos mudaram a sua atitude. Ficámos bem impressionados com isso e com o trabalho da RUSADA. Na realidade, veio a descobrir-se uma corrupção imensa. Foram de grande coragem o jornalista alemão e o casal de atletas que colaboraram com ele. E há uma coisa que é histórica, de o Presidente Putin ter feito uma declaração pública dizendo que a Rússia errou e que iria tomar todas as medidas para resolver o problema.

E neste escândalo há também a questão do encobrimento da Federação Internacional de Atletismo (IAAF)...
Inclusivamente, o meu colega, Gabriel Dollé [antigo director médico da IAAF], que era uma pessoa por quem eu punha as mãos no fogo e que, no final da sua carreira, se meteu numa situação impensável. O próprio laboratório russo também encobriu todos os resultados, mas isso também não me surpreendeu. O que se pensa é que se devia ter descoberto isto há mais tempo. Já existiam bastantes evidências, mas era difícil confirmá-las.

O Meldonium entrou na lista das substâncias proibidas no início do ano e o número de casos positivos foi de centenas. Como se explica isto?
O Meldonium esteve no grupo de monitorização da AMA em 2015. No dia 1 de Outubro de 2015 foi anunciada a nova lista e toda a gente ficou a saber com três meses de antecedência. O que ninguém sabia era que o Meldonium tinha uma janela de detecção tão grande que após a administração demoraria muito tempo para ser excretado. Ainda hoje não temos esse conhecimento, mas a AMA está a fazer esses estudos. Por isso se tomou a medida para determinados casos haver uma suspensão da suspensão. Penso que foi uma atitude correcta porque, se se provar, por exemplo, que atletas que tiveram resultados no início de 2016 foi resultado de administrações no final de 2015, como é lógico esses atletas não poderão ser punidos. Houve alguns sectores que viram isso como um “fechar de olhos” e que teria sido por causa da Maria Sharapova. Quando forem conhecidos os resultados dessa investigação, esses atletas podem ser novamente suspensos.

O que está mais avançado neste momento: o doping ou o antidoping?
É um processo dinâmico. Tem de haver grande inovação nos dois lados da trincheira e o que sinto neste momento é que o grande avanço que a área da dopagem tinha há uns anos está a diminuir. Antigamente, a luta contra a dopagem era feita apenas nos laboratórios antidopagem, hoje está na Interpol, na Europol, na indústria farmacêutica, nos serviços aduaneiros; em Portugal está na Polícia Judiciária e no Infarmed, no passaporte biológico, que foi um avanço imenso. Do outro lado há gente, cientistas de alto gabarito a idealizar coisas para a dopagem e investigadores que estão a fazer trabalho para a saúde e que, se não estiverem avisados, os dados da sua investigação podem ser utilizados na dopagem.

É possível identificar novas tendências no doping?
Temos medo da dopagem genética. Não temos provas de que ela esteja a ser utilizada, mas a AMA tem um grupo de trabalho nesta área. De qualquer forma, hoje o perigo da dopagem genética é menor do que se pensava há uns anos, mas a investigação continua. Neste momento, há uma cooperação muito grande entre a AMA e a indústria farmacêutica, que fornece algumas moléculas que estão ainda em fase de investigação e que sabemos que poderão ser mais tarde utilizadas na dopagem de atletas.

Há quem defenda que o doping deveria ser liberalizado para se criar um patamar de igualdade entre todos...
Como médico e conhecedor dos malefícios de algumas substâncias, diria que a liberalização do doping podia trazer grandes problemas para a saúde dos atletas e não defenderia aqueles que querem praticar desporto com os seus próprios meios e com técnicas lícitas de aumento de desempenho.

Consegue olhar para um grande feito desportivo de forma inocente?
Infelizmente, não. Já me aconteceu estar num grande evento desportivo, ao lado da minha mulher, que também foi atleta, há um atleta que ganha uma prova e nenhum de nós aplaudiu. É muito triste acontecer isso, quando não conseguimos aplaudir um campeão. O que temos de garantir à população é que esteja a aplaudir uma medalha de ouro limpa.

Direito de resposta

Na edição de 23 de Abril de 2016, o jornal PÚBLICO publica uma extensa entrevista ao professor Luís Horta, consultor da Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem, que versa, no seu âmago, sobre o exercício do meu mandato como presidente da Autoridade Antidopagem de Portugal (ADoP). Porém, o professor Luís Horta não se atém a uma apreciação objectiva do meu mandato, tecendo comentários baseados em “factos” falsos ou carecidos do devido enquadramento, culminando, não raras vezes, com acusações e insinuações ofensivas do bom nome e reputação do signatário e da Autoridade que representa, como sejam “houve falhas graves na gestão do laboratório por parte da actual direcção da ADoP”, “a situação do laboratório deteriorou-se muito nos últimos tempos”, “houve um erro da parte da própria ADoP no planeamento dos testes [porquanto] deveria ter sido perguntado ao laboratório se conseguia cobrir esse aumento”, “o laboratório sempre teve alguns problemas com a entrega dos resultados, mas nunca se chegou à situação de ser um atraso de cinco, seis meses”, “a técnica principal de EPO, a Dra. Ana Sofia Tavares, saiu do laboratório porque houve um problema de relacionamento com a actual presidência (...) o Dr. João Ruivo (...) também teve problemas com a actual presidência”, “o meu trabalho foi sendo destruído” e, v.g., “quando as pessoas tentam fazer diferente, modificar sem saber o que estão a fazer, pode acontecer o que está a acontecer neste momento”. A referida entrevista surge orquestrada com outras entrevistas/“notícias”, de igual teor, publicadas em jornais de ampla difusão, e que culminam com a manchete do jornal O Jogo, de 28 de Abril de 2015, que reza “Recuperar laboratório passa por saída de Jóia”.

De todo o modo, tendo a concordar na íntegra com o professor Luís Horta quando diz que “houve falhas graves” na forma como o Laboratório de Análises de Dopagem (LAD) foi gerido, mas no seu tempo como presidente da ADoP, não no meu, o que é atestado pelo relatório da Agência Mundial Antidopagem (AMA), de 25 de Março de 2014. Pior, o referido relatório da AMA evidencia que as acusações do professor Luís Horta (quando afirma que se verificam atrasos “de cinco, seis meses” na entrega de resultados) deveriam ser dirigidas a si próprio e ao período em que exerceu as funções de presidente da ADoP, tanto que a AMA já em Março de 2014 apontava tais irregularidades à actividade do LAD. Ademais, não é verdade que o LAD não estivesse preparado para fazer as 4071 amostras realizadas em 2015, sendo certo que, deste número, 606 são de passaporte biológico, o que representa um enorme avanço nesta área.

Mas mais grave, depois de 16 anos à frente da ADoP, o professor Luís Horta parece descuidar que passou a “pasta” ao actual presidente numa reunião de cerca de uma hora, no dia 19 de Junho de 2014, nunca me tendo exposto a situação sensível do LAD nem tão-pouco o teor do sobredito relatório da AMA de 25 de Março de 2014, o que é sintomático do desacerto e da má-fé do professor Luís Horta ao insinuar-se como alguém que teve o “sentimento de que saía de Portugal com a casa arrumada”, como levianamente afirmado na sua entrevista.

No que respeita às referências a “problemas de relacionamento” da actual presidência da ADoP com quadros técnicos do LAD, cumpre negar perentoriamente tais insinuações, tanto que a dra. Ana Sofia Tavares, técnica de EPO, deixou de prestar os seus serviços ao LAD com o fito de se dedicar à carreira académica, ao passo que a saída do Dr. João Ruivo, ex-coordenador científico interino do LAD, ocorreu por iniciativa deste (afirme-se). Todavia, importa esclarecer que, por iniciativa do signatário, se contratou um novo coordenador cientifico para o LAD com um percurso académico e profissional com provas dadas, a professora Susana Luz.

Por último, assevero que não desconheço as intenções e as pessoas a quem convém a difusão em simultâneo de cerca de meia dezena de “notícias” e entrevistas como a que ora se responde, tanto que o jornal O Jogo, de 28 de Abril de 2015, pressagia, após consulta às suas fontes, a “Saída de Jóia”. Porém, sob meu compromisso de honra, garanto que, enquanto me for permitido, não deixarei de desempenhar as minhas funções com total dedicação e compromisso no controlo e na luta contra a dopagem no desporto, nem, tão-pouco, deixarei de denunciar criminalmente os ilícitos detectados na gestão e no controlo da ADoP durante o mandato do meu antecessor, o qual, tão súbita e amplamente, me vem atacando sob o pretexto de que o seu “trabalho foi sendo destruído”.

Rogério Jóia, presidente da Autoridade Antidopagem de Portugal (ADoP)

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