Única certeza: o escuro

Os “poemas-colagens” de Rui Pires Cabral: ambientes sujeitos às variações da luz, ao vento do imprevisível.

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RUI PIRES CABRAL

Rui Pires Cabral reuniu em 2015 a poesia que tinha publicado entre 1994 e 2014, nomeadamente a que se contém nos livros que vão de Geografia das Estações (1994) até Oráculos de Cabeceira (2009). A eles se juntavam inéditos, dispersos e edições fora do mercado. Paralelamente a este corpus, dos mais importantes da poesia contemporânea, tem vindo a assinar, desde 2012 – com Biblioteca dos Rapazes (Pianola), título inicial desse núcleo –, um conjunto de títulos de carácter diferente. Estes incluem, ainda, Broken (Paralelo W, 2013), Álbum (Nenhures, 2013) e Oh! Lusitania (Paralelo W, 2014). É nesse veio da sua poesia que se integra Elsewhere/Alhures. Nestes livros, procede à elaboração daquilo a que chama “poemas-colagens”. Composições que são escritas/coladas com recurso a material deliberadamente pobre. Dependendo dos casos, podem ser, literalmente, recortadas e coladas, palavras ou sequências delas, retiradas dos livros usados como material de escrita. As palavras podem, ainda, ser transcritas e aplicadas sobre outra superfície, uma imagem, ou não (como sucede em Elsewhere). Em todos os casos, reconhece e, mais do que isso, destaca o ponto de partida destes seus títulos. Em cada um deles, a informação fornecida pelo poeta pormenoriza as expedições preparatórias que o levaram a perscrutar livros de aventuras (Biblioteca de Rapazes) ou relatos de façanhas navais (Broken). O que poderia parecer uma confiança cega na arbitrariedade dos encontros é um deliberado esquema conceptual e artístico que consiste em criar um ambiente de chegada simultaneamente gráfico e poético. E que, por isso, engendra um plano em que parecem querer suspender-se todos os juízos sobre as feições mais tradicionais de entender o poema. Não que se pretenda aqui inovar (a consciência autoral deste poeta largamente supera esse desiderato pueril), mas formular as questões eternas da poesia de uma forma distinta. Os poemas contidos nestes livros são, portanto, cuidadosamente compostos, como se de textos tradicionais se tratasse, e não de um modo que tudo submetesse ao simples encanto do material. Este, no entanto, encontra-se bem patente em resultados finais que surgem como pequenas gravuras que são poemas, ou vice-versa. Talvez se pudesse arriscar perceber nesta metodologia algo como uma imagem do próprio processo de escrita. A pesquisa em livros descartados, pouco “nobres”, de ponto de vista editorial ou estético, poderia entender-se como o espelho metafórico do próprio processo da memória – e do tratamento dela para os efeitos da escrita. Os livros trabalhados para produzir os “poemas-colagens” seriam como os dados que povoam e despovoam as recordações, e a actividade da escrita seria como um recorte, e uma colagem tentativa, desses dados da memória.

No caso particular de Elsewhere/Alhures, Rui Pires Cabral adoptou procedimentos ligeiramente diferentes, embora mantendo a linha orientadora dos volumes anteriores. Tal como sucedia com Oh! Lusitania, o ponto de partida foi uma obra escrita em língua inglesa (parcialmente, no caso); no entanto, ao contrário do que sucedia no livro de 2014, o texto inglês é acompanhado da sua tradução para português. O que repercute a origem do espécime bibliográfico de que Rui Pires Cabral lançou mão. Trata-se de um compêndio com mais de 200 anos – Nova Grammatica da Lingua Ingleza, ou A Arte de Fallar e Escrever com Propriedade e Correcção o Idioma Inglez, de Agostinho Neri da Silva –, cuja assinatura de posse e inscrição do proprietário original são reproduzidas no cólofon de Elsewhere/Alhures. É mesmo a esse primitivo dono que RPC dedica o seu livro (de resto, à semelhança do que fazia, em Broken, oferecendo-o ao capitão protagonista do livro aí utilizado, bem como ao tradutor da obra em causa).

O poeta optou por transcrever os excertos, dispondo original e tradução frente a frente, como se numa edição bilingue de poesia. Assim, de acordo aliás com a indicação do próprio título, tudo se situa noutro lugar. Ideia reforçada pela presença simultânea dos dois idiomas, que faz recair a atenção do leitor sempre nos dois lugares linguísticos, e portanto sempre alhures. A estranheza que algumas fórmulas provocam – “ He tarde./ Quando haveis de partir?” (p.6) – radica, quer na questão ortográfica (já que se mantém a ortografia de inícios do século XIX), quer nos próprios jeitos frásicos da época – “Que horas/ cuidais que serão?” (p.28) E todavia, esses acabam por ser vectores secundários, que não forçam o insólito. As doze secções de Elsewhere, que podemos entender como formando cada qual um poema, adoptam títulos retirados da gramática oitocentista, igualmente em registo bilingue – “Going upon a Journey / Ir de Jornada”, ou “After the Play / Depois da Comédia” – e orquestram dicções passadas para formar poemas tocados pela pátina do tempo. O que importa, contudo, é averiguar se tais manobras de bastidores produzem efeitos proveitosos e que efeitos são esses. Tal como sucedia nos volumes congéneres de Rui Pires Cabral, os resultados obtidos pelo autor surgem num ambiente entre feérico e circunstancial. Entre esses dois pólos extremos, surge o território que esta poesia é capaz de percorrer, onde se cria uma irrealidade que nos parece sempre dizer alguma verdade sobre o que somos. Poderia sempre objectar-se que a possível estranheza de uma produção como “Ha perigo na estrada real?/ Ha ladroes na charneca?// Maior perigo ha nos bosques do coração./ Quereis ir comigo?” (p.6) fixa o poema na contemplação de um sinal histórico: um tempo de salteadores por caminhos perigosos. Mas a centralidade dos “bosques do coração” recorda-nos a poesia de Rui Pires Cabral de uma forma que nos indica, para lá de toda a dúvida razoável, que o instrumento destes seus livros de “poemas-colagens” é exactamente isso: um modo de exercer uma arte, e não um fim em si mesmo. O pendor interrogativo, atento e viandante da sua poesia ressurge, nestes versos, mesmo se toma uma roupagem ligeiramente diferente. O que lhe confere, aliás, um acréscimo de sentido. Como uma névoa caída numa paisagem a escurecer. Esta poesia procura, não raras vezes, paisagens desoladas, anoiteceres, mudanças despercebidas, estados incompreensíveis ou, pelo contrário, a coincidência dos ciclos. E encontra em Elsewhere expressão adequada a essa demanda – “Chove, géla./ São mais pequenos os dias.// E distantes estamos do rio./ Meu amor.” (p.18) Há outros sinais que marcam a sua presença, discretos mas indiciadores de uma coesão forte com a obra que precede este livro. A importância dos livros, tão claramente em apreço num título como Oráculos de Cabeceira (Averno, 2009), assume aqui um carácter que não se queda na mera encadernação distintiva – “Que procurais?// Cousas da Alma/ para comer.// Ide pela loja do Diabo,// elle as tem todas./ Pretas, rubras, cruas.// Terá livros modernos,/ em carneira ou bezerro?// Sim, sim, de toda a sorte./ E também Poesia, para uso dos máos./ Ide sempre direito/ que não errais o caminho.” (p.14) O que faz este cruzamento de frases desavindas (mas por qualquer sortilégio harmonizadas por R. Pires Cabral) é criar um tempo, também ele, alhures. Não bem o passado, embora os seus sinais estejam bem impressos na verbalização do poema, mas também não exactamente o presente, atravessado pela memória de circunstâncias que quase não nos pertencem. Mas ficam, sim, a ser nossas, estas caminhadas em busca de um encontro ou de uma afinidade, estes percursos que pretendem resgatar do esquecimento um contacto, uma presença. Um afecto em vias de se perder para sempre. Estes versos que prosseguem e, de passagem, vão “alumiar” o que é “Escuro como a noite” (p.20), são uma provocação ao princípio que subjaz à sua própria organização. Porque, no fim, passa a prevalecer menos a qualidade das origens do que a fusão dos elementos. Não que se anule a sensação de estranheza – apoiada, de resto nas imagens em que se rasgam rostos por meio de recortes de palavras fragmentárias, ou pela distorção de feições anatómicas, pela rasura, ou simplificação do espaço, através de um geometrismo que se repercute em todas as ilustrações. Também a presença da língua inglesa – e, por consequência, da Inglaterra – dialoga com a poesia anterior do autor de Capitais da Solidão (Teatro de Vila Real, 2006). Esse horizonte transcende, ainda assim, a participação constante da língua inglesa, marcando mesmo o funcionamento de todo um poema – “O vosso amor,/ de que o quereis fazer?// De algum panno bom de Inglaterra.// E o que andais aprendendo/ de cór?// Que o panno bem cedo/ se gasta.” (p.22). A surpresa causada por este estranho enunciado, que articula o corpóreo com o que foge à carnalidade, adensa um mistério até ao fim. Pelo que não é só o torneado final do poema que decide a sua singularidade. Mesmo se essa conclusão lhe confere a dose de discreta melancolia de que, de repente percebemos, ele sempre precisou para ser aquilo que é: um artifício coloquial para dizer uma emoção demasiado profunda para ser expressa de outra forma: tudo morre. A mesma forma, quase subsumida, de afirmar a iminente tragédia de estar vivo está expressa no poema final do livro. Além de nos lembrar que a palavra “alhures” possui um acumular de sentidos que, aqui, se revelam mais agudos, este poema produz uma espécie de autobiografia do livro e da sua poesia. Resgatando os tópicos que animavam este entender da poesia, esta composição constrói-se como se o fortuito fosse seu guia – “Aqui temos estado,/ no canto mais fundo/ quasi por acaso” (p.28). No entanto, é de uma deliberação que se trata. Tensa e crítica, porque nunca linear, nem obediente. O seu caminho é tortuoso, como o declinar das interrogações que se mantêm até aos últimos versos. O seu modo é o do imprevisível atá ao derradeiro fôlego. Perdidos pelas veredas de outros tempos, estes versos percorrem caminhos onde escurece, e o tempo se faz agreste. Fazem-no sempre com uma aura de mistério e uma fímbria de desconhecido que recobre os poemas sem nunca os ocultar em demasia.

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