Um enigma grego: a metamorfose de Tsipras

Foi o alemão Schäuble a propor um “Grexit temporário”. E Atenas não tinha nenhum “plano B”.

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Disse Alexis Tsipras, terça-feira, na televisão pública grega: “Estamos ainda a sofrer de um distúrbio de stress pós-traumático.” Durante três semanas alucinantes, ele desafiou os credores, rompeu negociações, venceu o referendo, retomou as negociações e, por fim, sofreu na cimeira de Bruxelas uma derrota sem contemplações. Voltou a Atenas para pôr em prática um programa que contradiz tudo quanto o seu governo fez durante seis meses e o voto do referendo. Foi acusado de “capitulação”. Fala-se agora no “radical convertido ao realismo”.

As sondagens dão um quadro diferente dos discursos dos seus correligionários europeus que, depois de o terem elevado à categoria de herói da resistência a Berlim, dizem coisas apocalípticas sobre a Europa e a Grécia. Que dizem os gregos? 51,5% declaram-se a favor do acordo de Bruxelas e 70,1% a favor da sua aprovação pelo Parlamento; 48,7% atribuem a responsabilidade da degradação económica à Europa contra 44,4 que a atribuem a erros do governo. 68,1% querem que Tsipras continue a governar. É o único político popular (58,8%).

Mistérios do referendo
Após a vitória nas eleições de 25 de Janeiro, Tsipras não optou por uma aliança europeísta, mas por um “bloco soberanista” com a direita nacionalista e eurocéptica do ANEL. Desperdiçou o clima favorável que a França e a Itália lhe tentaram criar na Europa. Meteu na gaveta as reformas, organizou toda a política em torno da “recuperação da soberania”, enquanto o ministro Varoufakis dava “aulas” no Eurogrupo. Estava refém do seu “duplo mandato” eleitoral: pôr fi m à austeridade e manter a Grécia no euro.

Tsipras supunha ter uma “arma atómica”: a UE seria forçada a financiar a Grécia nas condições ditadas por Atenas sob pena de desintegração da zona euro. Namorou Putin para sublinhar a segunda arma, a de um desastre geopolítico para a Europa e os Estados Unidos. Romperam-se as relações de confiança. Tsipras abusou da demagogia nacionalista e Varoufakis tratou os parceiros de “terroristas”. Em Junho, a falência e o Grexit pareciam iminentes.

O referendo é ainda um mistério. Contou Varoufakis que, na noite da vitória do “não”, enquanto os adeptos celebravam o sucesso na praça Syntagma, fi cou espantado ao encontrar um Tsipras melancólico no seu gabinete. O ministro estava eufórico e tinha até um “plano B” para fazer xeque-mate à Europa. O plano foi recusado, Varoufakis demitiu-se e Tsipras apresentou a Bruxelas uma proposta muito parecida com a que foi chumbada pelos eleitores.

O referendo teve uma leitura óbvia: Tsipras contava reforçar a posição negocial da Grécia e obter concessões de última hora. A imprensa internacional interpretou a vitória do “não” como uma humilhação de Merkel.

Houve outras leituras. Terá Tsipras apostado numa vitória do “sim” para legitimar a aceitação das condições de Bruxelas? É uma hipótese improvável. Noutra versão, talvez mais realista, Tsipras terá percebido que a ultra-esquerda do Syriza estava decidida a bloqueá-lo. Por isso teria feito uma “fuga para frente”: romper as negociações e vencer o referendo, o que reforçaria a sua liderança e lhe daria margem de manobra para negociar com a Europa.

Tsipras equivocou-se num ponto: ganhou força, mas perdeu a negociação. O seu poder negocial estava quase reduzido a zero. Atenas perdera a credibilidade e estava isolada no Eurogrupo. O referendo acelerou a desintegração económica. E a “arma atómica” funcionou ao contrário: se o Grexit era perigoso para a UE — embora menos do que em 2011 — era letal para os gregos. Foi o alemão Schäuble a propor um “Grexit temporário”. E Atenas não tinha nenhum “plano B”.

Tsipras cedeu perante a força da realidade e a vontade dos gregos. Saiu incólume, e até reforçado, dos seus erros de cálculo porque “respondeu à primeira exigência dos gregos: a manutenção na zona euro”, resumiu a jornalista Thomais Papaioannou.

E, paradoxalmente, ganhou credibilidade junto dos parceiros europeus. “A assinatura do acordo garante hoje a Tsipras benefi ciar do apoio europeu”, declara o politólogo George Prevelakis. “É o princípio do bombeiro-pirómano. Ateou um fogo que só ele pode apagar porque conserva a confi ança da opinião pública.”

Nasce um estadista?
Os líderes europeus tomaram nota de que o único interlocutor que têm na Grécia é Tsipras — e nenhum outro. Simultaneamente, a dureza de Berlim causou graves estragos à sua imagem, o que Merkel tentará corrigir. A ameaça de Schäuble foi um erro político, ao pôr em causa o tabu da irreversibilidade da pertença ao euro. O acordo, com um novo resgate, foi apenas o primeiro acto de um drama que poderá trazer surpresas. Está garantida a pertença da Grécia ao euro? A resposta é não. Poderá a Grécia obter melhores condições? A resposta é sim.

A cena política continua fluída mas a popularidade de Tsipras mantém-se, apesar das “cambalhotas” — que os gregos perdoam aos políticos. A sua ultra-esquerda teme eleições. Vota contra os acordos mas não quer derrubar o governo. A subida nas sondagens do Aurora Dourada (neonazi) tem um efeito dissuasor.

E se as ideias comuns estiverem erradas? Assinala o jornalista italiano Vittorio Da Rold, que bem conhece a Grécia: “Depois da cimeira de Bruxelas, Tsipras abraçou o realismo, pondo de lado o radicalismo do Syriza. Até o jornal conservador Kathimerini, outrora muito crítico do primeiro-ministro, tomou nota da mudança de rumo: de líder partidário a chefe do governo do país.”

Frisa Da Rold que há outro Tsipras, o que tem esperança que o Podemos vença as eleições em Espanha, para ajudar a “mudar a Europa”. Mas insiste: “Ele tem uma oportunidade para modernizar o país, canalizando as estéreis fúrias políticas através de propostas políticas e tentando finalmente atrelar Atenas ao comboio da modernidade europeia.”

Corrobora o editorialista conservador Nikos Konstandaras: “Tsipras tem legitimidade para fazer reformas e provar que a sua viragem foi justifi cada. Estará sob fogo contínuo dos camaradas mais revolucionários do Syriza. Se tiver cabeça, se evitar a arrogância do poder, se unir em vez de dividir, Alexis Tsipras poderá servir bem o país.” Mais do que o que ele diz, olhem o que ele faz.

Escreveu em Janeiro — com algum cepticismo — o historiador Stathis Kalyvas: “Se [Tsipras] se mostrar capaz de reformar a disfuncional máquina administrativa, reformar o sistema de pensões, cortar a corrupção e a evasão fiscal, será celebrado como um grande reformador e dominará a política grega por uma década.”

Muda um político em 20 dias? A metamorfose de Alexis Tsipras é o novo enigma — e a incógnita — da Grécia de hoje.

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