Um dia contra os dias

Éramos felizes. Agora sabemos que somos.

Há dias em que só desobedecer faz sentido. Estabeleceu-se, depois de muito tempo, uma rotina que traz e retraz - sem diluir a felicidade das repetições - uma satisfação que não se farta de ser desejada.

Mas, mesmo assim (ou por causa dessa rara e alegríssima monotonia), ocorrem desejos selvagens de sabotagem, incumprimento e violência. Não podem ser amestrados. Não conseguem ser adiados. Têm de ser - não cegamente mas de olhos bem abertos - obedecidos.

Por outras palavras, é para nosso bem que nos submetemos (por muito delicioso que isso seja) à desorganização subversivamente desejada dos nossos prazeres.

A novidade é o prazer mais fácil. A mudança é a maneira mais preguiçosa de continuar a curiosidade. Dantes eu pensava que o mal não era meu mas da humanidade. Mas enganei-me: sim, o mal é da humanidade.

Mas eu pertenço à humanidade e, por conseguinte, a culpa não era, de maneira nenhuma, minha. E muito menos só minha, como eu pensava nos meus tempos apocalípticos, durante os quais as flechas inseridas na carne de São Sebastião nada eram comparadas com as minhas vulnerabilidades sempre evidentes, abertas e eternamente sangrentas.

No sábado a Maria João e eu fizemos gazeta da gazeta que parece ser a nossa vida. Materializámos tudo. Usámos o nosso amor como uma arma contra a falta de gulodice. Em vez de matarmos todos à nossa frente, como Bonnie e Clyde, comemos tudo o que gulosamente encomendámos.

Éramos felizes. Agora sabemos que somos.

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