O tempo próprio das sombras

Há apenas duas peças nesta exposição, e contudo elas envolvem-nos num ambiente sedutor, irreal, fantasmático

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Jorge Santos: a presença do natural no mundo contemporâneo

Há apenas duas peças nesta exposição, e contudo elas envolvem-nos num ambiente sedutor, irreal, fantasmático. Jorge Santos, que agora apresenta Casa de Vidro na Giefarte, tem-nos habituado ao desenho minucioso de sombras ou projecções de plantas e flores, ora isoladas ora agrupadas em conjuntos de folhagem que evocam longinquamente imagens dos urbanos jardins que nos rodeiam. Obtidas por processos que incluem a projecção de formas sobre o suporte, recordam de modo muito imediato as sombras projectadas de Lourdes Castro ou, a um outro nível, o cuidado quase oriental da representação do mundo da natureza. Contudo, uma observação atenta afasta-nos destes referentes. Enquanto que, para a primeira, a obra obedecia ao propósito de registar a evanescência da sombra, e no segundo caso ao interesse conceptual pelo respeito da tradição e pelo valor do infinitamente banal, na obra de Jorge Santos estes pressupostos afastam-se perante uma reflexão sobre a presença e a pertinência do natural no mundo contemporâneo.

Olhemos então, de novo, para a exposição. Duas peças, como dizíamos: um conjunto de painéis sobre papel, pintados a vermelho escuro e azul claro, separados por molduras amarelas (A grande janela); e uma segunda obra, a verde e rosa, sobre uma cortina de ripas (Brise-soleil); ao puxar a corrente que movimenta as ripas, é possível controlar o movimento da pintura desde a presença da sombra das folhagens até ao vazio. As duas peças instituem uma escala muito própria no espaço: a primeira, sobretudo, impõe-se visualmente na parede maior da galeria, ao mesmo tempo que a utilização das cores saturadas, distantes das que são obtidas pela representação fotográfica, nos coloca no plano próprio da arte. Não se trata de representação, no sentido de tentativa de capturar mimeticamente o real, mas de apresentação, de uma ficção sobre a natureza.

João Pinharanda, no texto de apresentação incluído no catálogo, cita a paisagem romântica para nos demonstrar como a obra de Jorge Santos se coloca no extremo diametralmente oposto do pensamento que a sustentava.Para o artista romântico, a paisagem era não apenas o lugar da experiência do sublime, como espelho fosco de um eu absoluto que se pretendia autêntico, nunca revelado na cidade corrompida, e por isso fonte de inspiração e (mais tarde, quando os avanços da técnica pictórica o permitiram) objecto da pintura “do natural”. Ora, apesar de Jorge Santos conhecer esta história, apesar de nos confirmar que parte da projecção de imagens que tiveram a sua origem na realidade sensível, o processo de trabalho que é o seu, e sobretudo a quebra da imagem total que realiza através da inclusão de molduras amarelas ou de ripas distintas de plástico destrói por completo qualquer ilusão que o espectador possa querer construir sobre a unicidade da imagem da natureza. O que assistimos aqui é a um estilhaçar da sombra, primeiro, e dessa imagem, em seguida. Aquilo que nos apresenta aqui é, enfim, a introdução do movimento lento da cortina como agente transformador da imagem da pintura. Já não se trata de pintura, trata-se de outra coisa.

E, como fica claro, essa outra coisa que aqui se cita permanentemente é o cinema. Não o cinema de hoje, hiper sofisticado tecnicamente, mas os filmes antigos de um Pudovkine, por exemplo, fascinados com o movimento das sombras sobre as superfícies brancas, mais tarde apropriados por um muito jovem Manoel de Oliveira em 1929. Jorge Santos fala-nos não de cinema, mas de vídeo e de instalação, que praticou durante anos. É deste trabalho com o movimento fugaz (das formas transparentes num écrã, ou do espectador na sala de exposições de uma instalação) que Casa de vidro também se ocupa. 

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