Falta a bola

Cristiano Ronaldo já tem uma estátua, mas esta não representa apenas o jogador. É também uma homenagem ao homenageador e um símbolo da globalização do futebol.

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Ilustração de António Jorge Gonçalves

A inauguração de uma estátua de Cristiano Ronaldo no Funchal, embora notícia, não é um acontecimento surpreendente ou imprevisto.

Para muitos portugueses, nestes tempos de crise e confusão, o jogador surge como uma reserva de esperança, um modelo a seguir pela sua disponibilidade física, perseverança e capacidade de trabalho. Ele foi o emigrante que deixou a sua terra natal a caminho de Lisboa antes de se afirmar na cidade de Manchester, como um desportista de sucesso. A identificação com esta gesta individual, e sobretudo com o corpo que a simboliza, é por isso compreensível e, como tal, facilmente sujeita à manipulação que conhecemos como propaganda. Até uma boa parte daqueles que antipatizam com a personalidade atribuem qualidades ao homem: a defesa da família, o culto do corpo, a capacidade de sacrifício para que a recolha dos frutos se concretize, a humildade do rapaz que diz não ter jeito para discursos.

Mas há outro factor que explica a homenagem do poder político da Madeira. Cristiano Ronaldo é uma estrela pop que compete com outras estrelas pop, quando não as ofusca. Simboliza hoje, como poucos jogadores, o lugar central que o futebol enquanto espectáculo global ocupa no mundo instigado pelo negócio da televisão e a mercadorização do jogo (fenómenos para que a China vai despertando). Nem por acaso, foi num clube pioneiro nessa transformação, protagonista de uma nova ordem transnacional do futebol, que Cristiano Ronaldo se afirmou: o Manchester United, emblema do Norte da Inglaterra, com adeptos espalhados pelo mundo, e gerido em proveito dos grandes bancos da City (como revela Anthony King, em The End of Terraces: The Tansformation of English Football in the 1990s, Leicester University Press, Londres, 1998).

Cristiano Ronaldo joga agora no Real Madrid, mas a lógica é a mesma. Ele é uma das muitas imagens desse espectáculo que, progressivamente destituído das suas raízes populares, ombreia com o cinema, a música pop ou a política. Fora do estádio, é mais uma imagem, mas uma imagem global, tal a intensidade e a repetição da sua circulação. Antes de ser o jogador, ele é Cristiano Ronaldo. Só assim, o seu sucesso, a sua popularidade, impressas nas costas de uma camisa, branca ou vermelha, chegarão a contextos que ainda resistem à hegemonia deste desporto (como a América do Norte) ou a lugares abatidos pela tragédia da guerra.

Afastado da relva, da luta corpo-a-corpo que o futebol também é, Cristiano Ronaldo presta-se a apropriações. É um asset. Vende roupas, produtos de beleza e da banca e involuntariamente promove ideias e concepções do mundo. Sem surpresa, a homenagem do Governo da Madeira, com a Medalha de Mérito e a estátua, da autoria do escultor Ricardo Veloza, no centro do Funchal, assinala um claro aproveitamento. À beira da saída da cena política, Alberto João Jardim recebe de volta o emigrante de sucesso e homenageia-se a si mesmo. A força de vontade dos madeirenses, evocada no seu discurso de domingo, não surge simbolizada apenas em Cristiano Ronaldo, mas nas décadas da governação do líder do PSD Madeira.

Esta estátua é para já a única a que os madeirenses, pobres ou ricos, podem aspirar. Feita de material nobre (bronze), é uma descendente modestíssima da escultura neoclássica que os regimes totalitários e autoritários recuperaram no século passado. É “um hino ao trabalho” (palavras terríveis de Alberto João Jardim), com uma protuberância inédita e sem a sisudez dos corpos anónimos de Arno Breker. Não podia ser de outra forma: fora das galerias e dos museus, a escultura moderna não pode representar personalidades aclamadas pelas massas; diga-se que essa não é, nunca foi, a sua pretensão.

Faça-se então outro exercício. Compare-se esta estátua com a de Eusébio (inaugurada em 1992) à entrada do Estádio da Luz. Se na da Pantera Negra se destaca o prazer do movimento, o desafio à gravidade, a do jogador madeirense mostra um corpo estático, hirto, expectante. Cristiano Ronaldo surge como um colosso que olha para a frente, fiel ao corpo do homem que não bebe, não fuma, distante dos génios atarracados, magros ou demasiados altos ou elegantes de outros tempos. A sua escultura é a de um corpo jovem, tonificado. Um super-homem. Não representa um clube (por isso não se antecipa ali o nascimento de um futuro mausoléu), mas ele próprio, como símbolo do futebol. Resumindo: Cristiano é o futebol hoje. Nada de espantoso, certamente, mas o turista mais atento não deixará de notar uma ausência na homenagem. A bola. Alguém se esqueceu da bola. Ou foi roubada. 

Crítico de arte

 

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