Aos 101 anos, Rosa pôs uma peruca, vestiu o roupão e posou para o calendário do seu centro de dia

Idosos vestiram a pele de estrelas de cinema num calendário. Mais do que as fotos, o importante foi o processo. A escolha dos fatos, vestidos, vernizes, maquilhagem, penteados, poses. A primeira edição esgotou e as receitas vão direitinhas para uma carrinha que transporta cadeira de rodas.

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Ricardo Castelo/Nfactos
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Aquele dia seria especial. Alberto Soqueiro, de 85 anos, sabia-o e não pensou duas vezes. Do armário, tirou o fato que já não vestia há 15 anos. Vestiu as calças, o casaco e o colete à moda antiga, colocou a gravata e sentiu que poderia ser vaidoso à vontade. Olhou-se ao espelho e gostou do que viu. À sua espera tinha uma sessão fotográfica para o calendário que andava a ser engendrado no centro de dia. “Vim prontinho de casa, do melhor que podia”, recorda. Os colegas do centro de dia do MACUR – Movimento de Assistência, Cultura, Urbanismo e Recreio, de Rio Meão, Santa Maria da Feira, riem-se da tirada numa tarde em que recordam peripécias e momentos.

Alberto aperaltou-se nesse dia. “Vesti um terno que lá tenho em casa há muitos anos. Sabia o que tinha e o que sou e todos gostaram de me ver assim”. Mais risos na sala. Alberto fez um gostinho à vaidade como nos velhos tempos. “Antigamente até para ir beber um copo de vinho à tasca, eu colocava a gravata”, confidencia. Na sessão fotográfica, não teve tempo de ficar nervoso. “Disseram-me para ficar conforme estava, nem ficar assim, nem ficar acolá, foi tudo ao natural, não se procurou posição para nada”. Quando a filha Paula viu o calendário gostou da espontaneidade. “A minha filha disse-me que assim é que estava bem”.

Rosa Ferreira fez 101 anos em Setembro. No ano passado, no centenário, teve direito a festa rija no centro de dia. Grande parte da família veio propositadamente de França para o almoço de aniversário. Rosa teve honras na televisão. Para a Praça da Alegria, da RTP, cantou A Ribeira, a canção que aprendeu em menina e que a ajudava a passar o tempo em que cosia redes para os pescadores ou que abria buracos na terra com a enxada nas mãos. Um ano passou e Rosa não imaginava a aventura que a esperava. Quando explicaram a ideia das fotos, as poses de Hollywood, o calendário que o centro de dia estava a preparar para angariar fundos, aceitou participar. E não recusou os adereços que lhe estavam destinados no improvisado camarim criado para recriar um ambiente de bastidores. Rosa saiu da cadeira de rodas e sentou-se numa cadeira. Colocaram-lhe uma cabeleira loura, pintaram-lhe as unhas de vermelho, passaram-lhe um MP3 para as mãos. Rosa era a estrela, duas colegas trataram-lhe as unhas dos pés e retocaram-lhe a maquilhagem. É assim que aparece na fotografia. Rosa alinhou na proposta, mas avisou que não iria encarar a câmara olhos nos olhos. A vontade foi cumprida.

Rosa voltou para a cadeira de rodas. No centro de dia, gabam-lhe a flexibilidade que ainda tem no corpo, por tirar as meias sem ajuda. Como correu a sessão fotográfica? “Correu muito bem. A idade já é muita, estou muito velha”, responde baixinho. O filho que cuida de si já comprou um calendário e vários seguirão para França. Marta Basílio, directora técnica das valências seniores da instituição, reaviva a memória durante a conversa, partilha detalhes. “A dona Rosa disse logo que sim, que participaria, e na sessão dizia-nos que a peruca lhe estava a fazer calor na cabeça”.

Marta Basílio recua às últimas semanas. Na tarefa de arrecadar receitas, através da angariação de fundos, surgiu a ideia do calendário. Foi apresentada numa reunião e aprovada sem reservas. “A equipa está sempre receptiva a coisas diferentes”, conta. Decidiu-se então que as páginas seriam preenchidas com os idosos, com aqueles que estivessem disponíveis entre 40 do centro de dia e 22 do apoio domiciliário. “Este calendário é uma homenagem aos nossos idosos que aparecem valorizados nas imagens e, ao mesmo tempo, um marco na história da instituição e uma forma de angariação de fundos”, resume a directora técnica.

Ideia aprovada, havia contactos a fazer e o comércio da vila não fechou portas. A Casa Barra emprestou a roupa, a Óptica Nunes os óculos.

A preparação foi vivida com muita intensidade. “Há muito trabalho de bastidores que não se vê”, confirma Marta. Roupa para escolher, roupa para experimentar, adereços para combinar, reorganizar horários dos transportes para não interferir com as actividades da instituição. Contudo, por ali, não se pensava noutra coisa e o entusiasmo tomou conta dos dias. “O processo intensificou a relação e a proximidade de todos eles”. Deles e de quem ali trabalha no cuidar, no fazer rir, na ajuda permanente para tudo o que é necessário. “E os familiares estão super felizes em ver os pais transformados em estrelas de Hollywood”.

André Rocha, fotógrafo de moda, recebeu um telefonema de Marta e prontamente colocou à disposição a sua arte e o seu pequeno estúdio em Rio Meão, sem cobrar por qualquer serviço. Na conversa, percebeu que os modelos que teria à frente eram completamente diferentes daqueles com os quais lida habitualmente. Pensou no que poderia fazer, o mais fácil seria ir ao centro de dia fotografar os mais velhos no seu dia-a-dia. André resolveu sair fora do formato e sugerir uma abordagem diferente. Colocar os habitantes da instituição social da vila onde mora em poses de artistas de Hollywood, em ambientes de “glamour”, em cenários de bastidores. “Propus um momento diferente que ia chocar pela diferença. Não fotografá-los no quotidiano normal, no jogo de cartas, mas num outro enquadramento”, explica.

Analisou os recursos que tinha e partiu para a aventura. Teve de lidar com algumas recusas em olhar directamente para a câmara, com algumas pressas dos modelos, com problemas de mobilidade, mas, dentro do possível, deixou-os à vontade. “Não é usual ver os idosos nestes cenários”. Não é mesmo e, por isso, o desafio tornou-se ainda mais aliciante. Está satisfeito com o resultado, mas são os sorrisos, os comentários, as alegrias, as sugestões partilhadas durante um mês que mais recorda. “O trabalho foi importante não só pelas imagens, mas pelos momentos que vivemos”. Fez novos amigos que o recebem de braços abertos. “Rimos um bom bocado”, confessa. Além das fotografias, André ficou responsável pelo vídeo do “making of” da produção fotográfica que será partilhado no Facebook da instituição.
 

A mulher de vermelho
Celeste Oliveira tem 86 anos e sorriso estampado no rosto. Na foto que ilustra os meses de Janeiro e Fevereiro é o centro das atenções. Um dos colegas do centro de dia é o fotógrafo faz de conta, outro colega arranja-lhe a bainha do vestido. Duas funcionárias tratam-lhe do visual, a directora técnica arranja-lhe a alça do vestido. É assim a foto. Celeste veste um elegante vestido vermelho e encara a máquina de frente. “Fizeram de mim gato-sapato”, brinca, para logo dizer que “não podia ter sido melhor”. Garante que não estava nervosa, repara que se calhar não devia ter escolhido um “vestido tão descapotável” nos ombros e volta a rir-se. Lembra que tiveram de colocar um degrau nos pés para ficar mais alta e que o vestido tapou os pés para que ninguém percebesse. “Cresci mais um bocadinho que sou pequenina”. A nora que está em França pediu-lhe um calendário para recordação e o pedido foi cumprido. Celeste volta à brincadeira. “Não há 'macaca' como eu. Era danada para dança”.

Emília Santos, de 80 anos, e Rufino Vilar, de 79, meteram-se num carro descapotável. Ela de lenço verde na cabeça, ele de laço ao pescoço e mãos no volante. São um casal na vida real e um casal famoso na foto que aparece rodeado de funcionários da instituição vestidos de fotógrafos e jornalistas. A ocasião era especial e Emília Santos não deixou escapar a oportunidade. O momento era digno de um beijo e o casal aproveitou para dar vários – não registados pela objectiva de André. Emília ri quando se lembra dos beijos trocados. “Foi um dia animado, gostei muito da experiência, foi uma obra muito bem realizada, ficou tudo muito bem”, avalia. O marido Rufino concorda. “Foi óptimo, um dia alegre, parecia um homem velho”. Homem velho, repete alguém na sala, e seguem-se mais gargalhadas.

Rogéria Reis meteu-se na carrinha e foi ao pronto-a-vestir que cedeu as roupas para escolher o vestido. A opção recaiu num vestido cor-de-rosa que na foto a preto e branco ficou branco. Rogéria é envergonhada e não fala muito, as colegas avivam-lhe a memória. Experimentou vários vestidos e no estúdio teve direito a tapete vermelho e palmas para a pose com o vestido rendado em cima, faixa de cetim na cintura, pregas na roda da saia. “Lembra-se do que lhe pusemos na cabeça?”, perguntam-lhe. Acena que sim com a cabeça e sorri. Rogéria tinha uma flor no seu cabelo branco.

António Marques, de 84 anos, também gostou da sessão fotográfica à porta do Casino de Espinho. Ainda teve de mudar de “pullover” no meio da rua, nada que o incomodasse. “Quem não gosta de se ver assim? Foi fantástico, o mais natural possível. Se é preciso então que se vendam os calendários para comprar a carrinha!” O colega Luciano Oliveira, de 85 anos, comprou cinco calendários para oferecer às filhas, um seguiu para França com carinho e carimbo de recordação. Luciano vive sozinho e o dia da sessão teve um sabor especial. “Correu tudo muito bem, foi um dia alegre, senti-me muito bem”. 

Orquídea Gomes é funcionária do centro de dia e envolveu-se de corpo e alma neste projecto. Tratou da maquilhagem, dos cabelos, das unhas, da pele, com ajuda das colegas. Foram muitas as solicitações naquelas semanas. As senhoras ficaram mais vaidosas e pediam que lhe pintassem as unhas das mãos e pés, que ensaiassem o penteado que melhor ficaria. “O mais difícil era fazer o risco dos olhos”. As mãos de Orquídea e das outras funcionárias chegaram para os pedidos. “Foi um momento único, um momento espectacular na nossa instituição. Os nossos idosos relembraram o passado, fizeram coisas que nunca tinham feito na vida. Havia senhoras que nunca tinham sido maquilhadas ou sequer pintado as unhas”. Experimentaram-se cores de bases, de sombras para os olhos, de vernizes. Ensaiaram-se penteados mais sofisticados. “Nós erámos o espelho deles”.
Primeiro, foram pedidos 300 calendários. Esgotaram. Pediram-se mais 100. Voltaram a esgotar. Encomendaram-se mais 200 para dar resposta a tanta procura. António Semeão, vice-presidente do MACUR, tinha algumas dúvidas de como a coisa iria correr. Foi um sucesso. “Tivemos um bocado de receio, mas foi uma surpresa bastante agradável. A primeira vez é um bocadinho mais difícil”. A verdade é que os calendários de 3,5 euros, que têm na capa uma foto da equipa das funcionárias do centro de dia da MACUR e na contracapa os nomes de todos os que tornaram possível a aventura, têm tido bastante saída. E tudo é bem-vindo para angariar fundos.

O dinheiro da venda será usado na compra de uma carrinha que transporta quatro cadeiras de rodas em simultâneo, até porque a viatura que anda em circulação começa a não dar conta do recado. O preço de mercado do veículo ronda os 38 mil euros e é preciso pôr pés ao caminho. Há mais iniciativas para arrecadar receita, como caixinhas de bombons embrulhadas e decoradas com arranjos coloridos e borboletas prateadas, e um jantar marcado para Janeiro, além de outras iniciativas. De qualquer forma, tão cedo não se deixará de falar desse calendário que circula pela vila de Rio Meão e que está a chegar a outras partes do mundo.

 

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