Vítor Bandeira: tantas vidas numa vida

Esteve nas redes indígenas tão naturalmente como está neste 10.º andar da Caparica ou no Boom Festival. Duas ou três histórias do viajante que deu origem à colecção amazónica do Museu de Etnologia.

Foto
Miguel Manso

“Pode deixar os sapatos aqui? É que nós vivemos no chão.”

Três e meia de uma tarde de Novembro na Costa da Caparica. Lá fora chove torrencialmente desde manhã. Do outro lado do Tejo, no Museu Nacional de Etnologia, acartam-se baldes de água, o temporal entrou em todas as colecções na reserva, salvo a da Amazónia, e é justamente essa que traz a repórter à Caparica. Porque o homem que a coleccionou, escavando por exemplo urnas do Marajó com “uma pazinha de praia”, é o morador deste 10ºB sobre o mar, revolto, soberbo. Quem entra tira os sapatos, e logo adiante está em Bali, em Goa, na Guiné e por aí fora. Os 83 anos de Vítor Bandeira deram para muitas partidas.

Ele lembra um Confúcio, a forma da barba, a estatura leve, o silêncio de quem caminha com meias em tapetes orientais. Como a repórter está encharcada até às meias, Lela, há mais de 40 anos mulher de Vítor, vai buscar umas de lã. Tudo de repente muito confortável, olhando o mar, a chuva pelas várias janelas da sala. E ainda aí vem um chá preto com leite, bule inglês, tabuleiro de Rawalpindi, portanto falamos do Paquistão.

O anfitrião parece naturalmente sentado em qualquer conversa. Apreciadores de transe electrónico poderiam fazer-lhe toda uma entrevista sobre o bienal Boom Festival, de que Vítor Bandeira é pioneiro, e a que voltará na lua cheia de Agosto de 2016. Tal como um académico poderia incluí-lo numa investigação sobre a elegância balinesa ou o tempo amazónico.

Como África levou ao Brasil
Na véspera de rebentar a guerra colonial em Angola, em 1961, Vítor Bandeira andava por perto. Estudara artes em Lisboa, tivera um antiquário, cansara-se da loja, comprara um jipe, partira: deserto do Saara, Senegal, Mali, Costa do Marfim, Guiné Equatorial, com a mulher de então e um amigo francês, que entretanto os deixou. “Tudo por terra, só entre Senegal e Costa do Marfim meti o carro no barco.” Pelo caminho ia comprando peças, incluindo máscaras dos Dogon do Mali com quatro metros de altura. “Tive de ter a coragem de as serrar.” Mas o encaixe de volta era fácil. “Eu já gostava de coisas africanas. Tinha de as vender para fazer outra viagem. No fundo, do que eu gostava mesmo era de viajar.”

Dessa expedição de meses trouxe uma grande colecção. “Eu tinha um amigo de infância, o escultor Lagoa Henriques, e ele ficou louco ao ver aquilo.” E como Lagoa Henriques era professor no Porto, Vítor acabou por mostrar a colecção lá. “O Eugénio de Andrade foi ver e falou com o Jorge Dias.” Lendário fundador do Museu Nacional de Etnologia, então em fase de projecto. “O Jorge Dias foi ver, falou comigo, gostámos muito um do outro e o museu acabou por me comprar as peças. Criou-se uma grande amizade.”

É daqui que nasce a viagem à Amazónia. “O Jorge Dias sugeriu-me ir ao Brasil fazer uma colecção para o museu. O Brasil não estava nos meus planos, eu ainda estava interessado em culturas materiais, com esculturas, e no Brasil dos índios achava que ia encontrar sobretudo plumária. Mas entusiasmei-me.”

Enrola um cigarro, corta um papel para fazer o filtro e fuma de boquilha, na pausa da história.

“Então, o Itamaraty [diplomacia brasileira] deu-me uma beca que só se destinava a pagar o avião mas tinha a grande vantagem de fornecer cartas para directores de museus, Serviço de Protecção dos Índios, governadores, correio aéreo, que era como eu viajava, nos DC3 da Força Aérea Brasileira, e de hidrovião.”

Essa estadia brasileira prolongou-se por um ano, então apanhou todas as estações das águas, altas e baixas, que tanto mudam a paisagem. “No Marajó, andando a cavalo, cheguei a ter água até às botas, portanto andava descalço, com os pés em plástico.”

O Marajó, na foz do Amazonas, é a maior ilha marítimo-fluvial do mundo. Tem uma cultura de cerâmica única, que remonta a tempos pré-colombianos. “Supõe-se que as últimas migrações dos índios vieram ali parar.” Vítor Bandeira já tinha ido ver colecções marajoaras em museus europeus, e agora ia lá mesmo.

Começou por se instalar no Rio de Janeiro, base em Copacabana, enquanto recolhia as cartas do Itamaraty. “As minhas habilitações resumiam-se ao liceu, mas a carta fazia-me doutor porque ia de fato e gravata. Quando voltei lá já era professor, e no fim excelentíssimo senhor professor.” Teve as “portas todas abertas”.

O Serviço de Protecção aos Índios tinha uma cota nos aviões e concedeu-lhe “direito a viajar com 250 quilos de bagagem”. Esses voos eram a forma de acesso ao Xingu, o parque indígena idealizado pelos irmãos Villas-Bôas, sertanistas pioneiros, e projectado pelo antropólogo Darcy Ribeiro, então membro do Serviço de Protecção aos Índios. “Conheci o Cláudio Villas-Bôas. E estive lá com o rei Leopoldo [III] da Bélgica, que gostava muito de viajar. Tinha ido com um ictiólogo que andava a estudar uns peixinhos. Ficámos amigos, e depois ele veio ter comigo a Bali.” Ele, o rei Leopoldo. Isso, durante as longas temporadas que Vítor Bandeira passou em terras indonésias.

A sua leitura amazónica era o historiador das religiões Mircea Eliade: “Li tudo o que consegui arranjar.” E teve tempo. “No Xingu chovia, chovia, já não havia o que comer, e não se podia vir pelo rio porque não havia gasolina. Então um dia ouvimos um avião. Era da força aérea americana, abre-se a porta, sai um senhor e diz: ‘How are you Mr. Bandeira?’ Tínhamo-nos conhecido num cocktail no Rio e ele achou que queria aparecer.” Vítor apanhou boleia de volta, mas teve de deixar as peças todas na aldeia índia. “Só trouxe um papagaio.”

Troca por troca
Nesse tempo, pré-protecção das espécies — 1964-1965 — a plumária ainda podia sair do Brasil. De resto, Vítor Bandeira não se lembra de ter problemas com nenhumas peças. “Aquilo passava na alfândega e ninguém ligava nenhuma, nem lá nem aqui. Facilitaram-me tudo. Os transportes é que eram o grande problema. Como transportar urnas de barro que tinham sido recém-escavadas?”

O toque do Skype irrompe pela sala oriental sobre o mar. Logo de seguida é o telemóvel, um amigo que acaba de voltar do México. O que significa: meios de comunicar à distância sempre ligados. Mas sem quebrar a escala oriental: o computador de mesa não está numa mesa, e sim no chão, em cima de um suporte, de modo a que quem o use fique sentado como um buda.

De novo, Vítor Bandeira parece naturamente sentado em cada momento, 2014 como 1965, entre os índios da Amazónia. “A compra fazia-se por troca. Primeiro, [na cidade] íamos a um armazém comprar machetes, tesouras para eles cortarem o cabelo, anzóis, nylon para pescar, tabaco, missangas para os colares, tecidos, paninhos de algodão vermelho.” Todo um estendal para a troca, e todo um treino. “Uma vez levei missangas encarnadas e eles gostavam era de azul. Tive de aprender.” Como falavam? “Os chefes em geral falavam português, ou havia quase sempre alguém que falava, e recebiam-me bem, sempre. Mas também me deixavam ir embora bem. Não era como em África, com beijos e abraços. Ali, não. Voltam costas e já está.”

O ritual de troca variava. Da primeira vez, no Xingu, aconteceu assim: “O chefe disse: enquanto não mostrares o que tens para a troca não vais encontrar nada, então vais para o centro da aldeia e pões as tuas coisas cá fora.” Vítor assim fez. “Então eles levaram tudo e depois cada um trazia uma coisa. Às vezes entregavam-me coisas que não me interessavam nada. Era muito difícil explicar-lhes o que eu queria. Quando conseguia explicar que queria as coisas velhas [usadas, dançadas em rituais, etc, e por isso com outra expressão], eles não percebiam porque eu não queria as novas.”

Noutras situações, a primazia da troca invertia-se. “Eles traziam uma coisa e eu dizia o que dava. Mas é sempre uma troca de desejo por desejo, não há valor.” Vítor dormia na maloca [cabana comunitária], na rede. “Foi facílimo habituar-me, é o tipo de vida de que gosto, dia a dia. Cada dia é um dia. Aqui, de repente o tempo passa e já estamos outra vez no domingo.” Andava a pé, de canoa, de cavalo, e no Marajó entre os búfalos, que lá na ilha são mais de meio milhão.

Só o Marajó é toda uma conversa. “Fiz a escavação das urnas praticamente com uma pazinha de praia, e um homem a ajudar.” Esse acesso total resultou de um acaso. “Tenho família no Brasil, um primo casado com uma moça do Marajó, e o pai dela era o Coronel Fernandão, fazendeiro local. Foi uma coincidência fantástica. Ele sabia de um terreno em que já se tinham encontrado peças e era amigo do dono. Então, quando cheguei a Belém do Pará com a carta do Itamaraty, o coronel Fernandão disse: a carta não me interessa nada, você vai para o Marajó e eu trato de tudo. Fui numa avioneta. O dono do terreno, que se chamava Luisinho, assinou um papel que me autorizava a escavar e levar. Não havia troca nenhuma. Quando fui embora ofereci-lhe uma sela com coisas em prata, que mandara fazer em Belém.” As urnas foram empacotadas com capim. Hoje estão dentro de uma vitrina, no Museu Nacional de Etnologia, em Belém, Lisboa. E o capim das embalagens também, noutra vitrina. “Algumas partiram-se no caminho.”

Lela, aqui sentada connosco, ainda não era mulher de Vítor, então. Só se conheceram em 1972. Porque ele tinha corrido as ilhas da Indonésia, ela ia de férias para lá e um amigo comum apresentou-os. Quando Lela voltou, foi almoçar com Vítor ao Parque Mayer, contar a viagem. “Mas durante o almoço tive um ataque de malária, comecei a sentir febre, e ela levou-me para sua casa.” Até hoje.

Portanto, quando a revolução islâmica começou a estalar no Irão, já estavam juntos. Tinham partido em 1976 para chegarem à Índia, demoraram dois anos a voltar. Em Teerão apanharam as primeiras manifestações contra o Xá. Atravessaram os desertos da Síria e do Iraque com 50 graus, no Verão. Lela deitava água na cabeça de Vítor e ele continuava a guiar.

Onde nunca foram, mas querem ir, é ao México.

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