“Se há dinheiro para comprar telemóveis vou comprar telemóveis”

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João Ferrão Pedro Nunes

Segunda parte da entrevista a João Ferrão, especialista em Ordenamento do Território.

Que oportunidades se desenham com o novo Quadro Comunitário de Apoio?
Mais uma vez, há muito dinheiro e nós não temos capacidade de o utilizar. Mas aqui o problema é outro. A Comissão Europeia pela primeira vez fez uma coisa extraordinária que foi definir objectivos iguais para todos os países. Depois, cada Estado-membro tem que dizer é como é que vai gastar o dinheiro. Mas enquanto determinados países vão integrar as verbas disponíveis na estratégia que já têm, Portugal, como sempre, fez o contrário: anda a desenhar uma estratégia para ir buscar o dinheiro. E depois, claro, que somos muito inovadores, não é verdade. Vamos ser francos: o que se está a fazer é uma estratégia para ir buscar dinheiro e dar resposta às condições que a Comissão Europeia impôs. Tudo aquilo que vê de inovador no contrato de parceria é inovador porque nos foi imposto. Aliás, as regras são claras: “Querem dinheiro? Têm que fazer isto desta forma”. E tudo isto porque não temos estratégias minimamente estabilizadas. Mesmo nas áreas em que havia políticas relativamente consensuais, esse consenso foi completamente cortado e temos agora políticas que entraram em disrupção com as orientações anteriores. Talvez haja apenas uma excepção, na área da modernização administrativa.

No que é que isto poderia ser diferente?
Quando não há trabalho de casa feito e quando não há uma visão estratégica, a única coisa que nos resta é responder da melhor maneria àquilo que nos pedem. Agora, há coisas que são diferentes porque a Comissão obrigou a que fossem diferentes. Não se pode continuar a investir como se investiu em equipamentos, infraestruturas, etecetera. Um exemplo concreto é o da política das cidades. A Comissão Europeia defende que todos os países devem ter uma política de cidades e é essa política de cidades que justifica o modo como se vai recorrer aos instrumentos e às verbas disponíveis no novo ciclo comunitário. A França, por exemplo, tem uma política de cidades e diz ‘Muito bem, a Comissão Europeia apoia isto, então a nossa política de cidades tem uma parte que é Orçamento de Estado e vai beneficiar desses apoios para a eficiência energética, reabilitação urbana, etecetera’. Mas os franceses já tinham a sua política de cidades e foram lá buscar o que selectivamente lhes interessa. No nosso caso, como não havia política de cidades nenhuma, esta questão não apareceu. De tal maneria que a própria Comissão obrigou a que Portugal tivesse uma política de cidades. Eis um exemplo da forma como nós, quando não temos uma visão e não temos o trabalho de casa feito, limitamo-nos a tentar responder bem àquilo que nos pedem. E as vezes vamos arranjar umas estratégias e umas políticas à pressa para podermos dizer à Comissão Europeia que temos uma política que aposta naquelas questões a que os fundos são destinados.

Vamos desperdiçar mais uma oportunidade de utilizar os fundos disponíveis?
Não sou tão crítico. Em relação a essa coisa do desperdício…

…em quadros comunitários anteriores houve milhões a serem usados na infraestruturação de cidades que agora o Governo está a desmunir de serviços básicos. Não estamos a desperdiçar com isso todo este investimento?
Houve facilitismos e excessos claros e houve a lógica de sempre e que é ‘se há dinheiro para comprar telemóveis, vou comprar telemóveis’. Mas quem é que definiu as regras? Foi a Comissão Europeia. Quem é que decidiu dar dinheiro para quê? Foi a Comissão Europeia. Portanto, quando ao autarca dão dinheiro para fazer piscinas, ele faz piscinas. A verdade é que as regras e as condições empurraram-no para isso, o que não quer dizer que não haja responsabilidade do lado dos actores portugueses, para além da da Comissão Europeia. Porquê? Porque a Comissão Europeia vai buscar grande parte do dinheiro através das importações daquilo que são os nossos investimentos, ou seja, a Comissão Europeia apoia para fazer não sei o quê e eu vou comprar equipamento à Alemanha que, por sua vez, exporta e, portanto, recupera parte do dinheiro. E há outra coisa: ninguém previa esta crise, uma contracção tão forte do ponto de vista económico, financeiro e demográfico. O que eu espero agora, mais do que atribuir responsabilidades, é que tenhamos a humildade de aprender com os erros. Infelizmente, o que vejo no terreno é a mesma cultura de desenvolver uma estratégia em função daquilo que está disponível. Hoje não há autarca que não fale em reabilitação urbana, isso é bom, mas é só porque há dinheiro para a reabilitação urbana. Por outro lado, não deixa de ser verdade que as políticas públicas têm um papel pedagógico, ou seja, quando diz que há dinheiro para A, B ou C, está a estimular determinados comportamentos em detrimento de outros. É como criticar as rotundas. Por que é que houve tantas rotundas? Porque havia dinheiro para fazer as rotundas. 

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