Memórias da guerra não são longos lutos tranquilos

O historiador Nicolas Offenstadt, que resgatou da obscuridade contemporânea o debate sobre os fuzilados da Grande Guerra, dando-lhes o direito à memória, defende que a celebração do centenário é um teste à “carga nacionalista ou patriótica” que tem dominado a narrativa sobre este período.

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La Grande Guerre. Carnet du Centenaire (2014), de Nicolas Offenstadt e André Loez e apoiado pela Mission du Centenaire de la Première Guerre Mondiale, é talvez o livro mais original e estimulante escrito recentemente sobre o assunto. Sem a pretensão de produzir uma síntese ou endossar uma única narrativa ou olhar histórico, nem tão pouco uma mensagem comemorativa, esta é uma obra rigorosa no conteúdo, provocadora na organização e no âmbito, primorosamente ilustrada e, ao mesmo tempo, marcadamente pedagógica.

Constitui assim um extraordinário volume que combina rigor histórico com uma capacidade invulgar de comunicação pública. Cumpre uma função cívica sem menosprezar o protocolo científico, evitando ceder a simplismos de ocasião e recusando as agendas escondidas de vários empreendedores da memória, fora e dentro da academia. A visão mundializada, fragmentada e oblíqua da Guerra que o livro propõe, feita de múltiplas experiências e perspectivas – da de Paul Wittgenstein (irmão de Ludwig), brilhante pianista amputado na Guerra, à do General Mangin, responsável pela promoção do uso maciço dos tirailleurs senegaleses (e da “força negra”) e conhecido pelas suas tropas como  “o carniceiro” –, constitui, em si, recusa de uma memória homogénea, sectária ou nacionalizada do conflito, do seu desenrolar e das suas consequências.

Nicolas Offenstadt é historiador e professor na Universidade Paris I Panthéon-Sorbonne, sendo autor da importante obra Les Fusillés de la Grande Guerre et la Mémoire Collective (1914-1999) (1999), que resgatou da obscuridade contemporânea o debate sobre os fuzilados da Grande Guerra, colocando o estudo do seu lugar na memória colectiva no centro do debate. Cerca de 2400 soldados franceses foram condenados à morte por deserção, desobediência, insurreição, abandono de posto e mutilação voluntária. 600 foram executados, “como exemplo” (veja-se Fusillés pour l'exemple, 1914-1915 de André Bach, de 2003), começando com Frédéric Henri Wolff, chefe de batalhão do 36º Regimento de Infantaria Colonial, morto no dia 1 de Setembro de 1914. Foi condenado, em nome da disciplina militar, por “tentativa de capitulação” e “incitação à fuga perante o inimigo”. Mais recentemente, Offenstadt colaborou no Quelle mémoire pour les fusillés de 1914-1918? Un point de vue historien, relatório coordenado por Antoine Prost e entregue ao Ministério da Defesa (mais propriamente, ao Ministro delegado junto dos Antigos Combatentes). O problema da memória e da reabilitação dos fuzilados foi submetido a uma apreciação crítica sem precedentes. Nesta entrevista, Offenstadt resume o problema e a perspectiva da comissão encarregue de reflectir sobre esta importante questão.

Membro destacado do Collectif de Recherche International et de Débat sur la Guerre de 1914-1918 e do Comité de Vigilance face aux Usages Publics de l'Histoire, Nicolas Offenstadt tem pautado a sua actividade por uma  promoção constante da vigilância crítica sobre os usos da história e da memória. Registem-se dois exemplos. Primeiro, o seu L’Histoire Bling Bling. Le Retour du Roman National (2009), que desvela os usos políticos da história durante o governo Sarkozy, numa política da memória desenhada por Henri Guaino, e orientada para a construção de uma narrativa comum, higienizada, escrita e simplificada para “consumidores” da identidade nacional e do positivo passado colonial francês. Talvez Portugal e o seu império merecessem um exercício semelhante. A sucessão de operações recentes de revisionismo e higienização dos passados e dos legados do colonialismo português, incluindo dos seus momentos mais violentos, para isso concorre. Segundo, o seu 14-18 Aujourd’hui: La Grande Guerre dans la France Contemporaine (2010), que ilumina as apropriações culturais e políticas da Guerra e da(s) sua(s) memórias, questionando o sentido e o objectivo de tais operações. O associativismo, os empreendedores da memória, o turismo da guerra e a sua economia, e a instrumentalização política são analisados com perspicácia crítica. Como escreveu Lucien Febvre: “Uma história que serve é uma história servil”. Offenstadt mostra ter apreendido o sentido destas palavras com espírito de missão.

Por que considera importante dar uma descrição multifacetada, uma espécie de mosaico, da Guerra, reconhecendo a pluralidade de perspectivas e vozes, alargando, e de facto globalizando, o enquadramento analítico do conflito?
Quando contamos a Grande Guerra através de um traço único para construir uma grande narrativa, os riscos são múltiplos: enfoque nos acontecimentos políticos e militares, privilégio dos conflitos maiores, valorização de coerências que efectivamente não existiram, caminhar sempre na mesma direcção. O mosaico permite evitar, parcialmente, esses riscos, deixar espaço a possibilidades diferentes e ainda a experiências humanas mais numerosas.

A estrutura do livro implica uma forma particularmente oblíqua de confrontar a memória da I Guerra Mundial, procurando evitar a sua apropriação específica por grupos particulares. É variada, fragmentada e, desse modo, representativa. Este foi um propósito central?
Trata-se sobretudo de mostrar que as memórias da guerra não são longos lutos tranquilos mas questões marcadas por conflitos múltiplos: entre actores políticos, entre laicos e clericais, com rivalidades locais, regionais, etc. Como a sua questão deixa subentender, trata-se também de insistir no carácter social da memória que se inscreve nos grupos com passados e objectivos variados, por vezes muito antigos (a Igreja, as igrejas), por vezes novos, como os antigos combatentes de 14-18 e as suas recém-criadas associações.

Nesse sentido, qual é a importância da ênfase pedagógica e didáctica nas formas pelas quais tentamos recontar a história da I Guerra Mundial?
La Grande Guerre. Carnet du Centenaire é dirigido a um público francês (mas não só) e tenta responder de facto a um forte interesse social pela Grande Guerra. Em França, desde há uma trintena de anos as memórias de guerra estão bastante activas. Trata-se, verdadeiramente, de uma prática social e cultural, com a criação de inúmeras obras em torno de 14-18: livros, ficção como história, filmes, banda desenhada, canções; etc; grande actividade genealógica e de memórias familiares, por exemplo pelos blogues e na Internet, numerosas comemorações, etc. Num trabalho sobre este aspecto, falei de um “activismo” 14-18. Para nós, o papel do historiador não é de menosprezar esse activismo mas de acompanhá-lo tentando dar-lhe os elementos de reflexão que saem dos conhecimentos básicos e intuitivos do saber comum para levar um pouco dos trabalhos dos historiadores a um espaço público mais alargado, que sobre este assunto em França é muito receptivo. Logo, sim, há uma verdadeira intenção pedagógica, com o objectivo de animar o espaço público sobre a Grande Guerra.

No meu ponto de vista, o vosso trabalho tem uma característica muito interessante e importante a vários níveis: evita centrar-se na narrativa nacional, neste caso resiste ao fechamento na guerra francesa, ao privilégio da experiência e do papel dos franceses. Por que considera esta orientação um ponto importante?
Por duas razões: uma moral, a outra científica. A razão moral é a de participar na abertura internacional da ciência histórica, para lá de fazer reflexões como cidadão. Os pontos de vista repetidos com frequência [no espaço público] raramente são fecundos. Podem ainda sustentar políticas de exclusão. A segunda é relativa à investigação histórica. A Grande Guerra é mundial em três sentidos, pelo menos: primeiro, pelo seu impacto, com graus variados, no conjunto dos continentes: a Grande Guerra toca a China, o Brasil ou a Nova-Caledónia, combate-se em África...; segundo, pela imensa circulação de pessoas (soldados, trabalhadores, populações deslocadas), de um país para outro, de um continente para outro; terceiro, pelos enquadramentos mundiais com os quais o conflito interage: por exemplo, antes mesmo da entrada na guerra, as ligações económicas dos Estados Unidos com os Aliados eram já muito importantes.

Assim sendo, considera que o entendimento da guerra ainda é marcado por perspectivas e narrativas nacionais, e pela atribuição de papéis excepcionais a participantes particulares (franceses, alemães, britânicos, etc.)?
Aqui devemos distinguir tanto os países como os tipos de actores. A carga nacionalista ou patriótica do relato histórico é mais ou menos intensa. Em certos países, a história da Grande Guerra é um episódio central no roman national [narrativa fortemente patriótica que valoriza a construção histórica da nação], por vezes instrumentalmente invocada no presente, como sucede, por razões diferentes, nos países oriundos do desmantelamento do Bloco de Leste, na Rússia como na Sérvia. Aqui claramente não há separação entre solidificação do sentimento nacional, hoje nacionalista, e comemoração. Atente-se na escrita da história por alguns: por exemplo na Sérvia e na parte sérvia de Sarajevo, foram inauguradas estátuas de Gavrilo Princip, o assassino nacionalista do arquiduque! Num género mais aberto, na Austrália, a Grande Guerra está bem no âmago da “epopeia nacional” porque o país combateu pela primeira vez enquanto Estado federal. Nos estados democráticos, os historiadores são geralmente partidários de uma escrita da história numa perspectiva global, sem cair demasiado em questões meramente nacionais. Mas mesmo nestes casos não é tão simples. Certos historiadores ingleses, por exemplo, procuram recuperar a força patriótica da guerra de 14-18.

O patriotismo e o nacionalismo exacerbado de então continuam activos nas formas como pensamos a I Guerra Mundial?
Sim, absolutamente, como disse antes. Eles tomam formas diferentes segundo os países, mais ou menos explícitas, mais ou menos reaccionárias, mais ou menos atentos à verdade histórica. O Centenário é, nesse ponto de vista, um teste que devemos acompanhar com atenção.

Numa entrevista recente, declarou, no meu entender de modo certeiro, que um dos riscos das presentes comemorações é alimentar as mitologias de unidade nacional: que todos apoiaram a guerra, não existiam diferenças geracionais e divisões sociais. A contestação à guerra, os movimentos pacifistas e as deserções são aspectos frequentemente desvalorizados na nossa avaliação desses conflitos. Porquê?
Ao nível dos dirigentes políticos, as comemorações inserem-se muitas vezes numa perspectiva utilitarista: num tempo onde o domínio dos actores políticos sobre os assuntos económicos e sociais é limitado, as comemorações são uma boa ocasião para produzir laços sociais (logo nacionais, para os governos nacionais). Para que isto funcione, convém então insistir, para além da razão, sobre o que une mais do que sobre o que divide. Mesmo o presidente da República em França, que não é especialmente nacionalista, apresentou a vinda de tropas coloniais [para combater em contextos de guerra na Europa] como um compromisso para com a França, quando na realidade se sabe que foi sob o peso da coerção que elas foram mobilizadas. Mas no preciso momento em que a França intervém em África, é útil apresentar uma tal mitologia. Na mesma ocasião, o presidente misturou as duas guerras mundiais como se fossem um mesmo combate pela liberdade, o que advém do roman national.

O que se pode fazer para contrabalançar esta narrativa prevalecente?
Os militantes da esquerda escolheram fazer “contra”-comemorações. Quer dizer, fazer comemorações frente a monumentos aos pacifistas mortos, cantar músicas anti-guerra durante as comemorações (como a Chanson de Craonne), até mesmo cobrir as estátuas dos generais. Certamente é uma outra forma de roman national, nem sempre muito rigorosa numa perspectiva histórica, mas é interessante para recordar outras histórias de guerra. Também os artistas, pelo menos em França, dão um grande espaço à recusa da guerra (na banda desenhada, nos romances). Parece-me que, por ocasião das comemorações, os historiadores têm também um papel a desempenhar para moderar as grandes narrativas nos meios de comunicação social.

Foi um activo colaborador no Quelle Mémoire pour les Fusillés de 1914-1918? Un Point de Vue Historien, realizado pelo grande historiador Antoine Prost. Também foi o autor do Les Fusillés de la Grande Guerre et la Mémoire Collective (1914-1999). Como vê a reapreciação e reabilitação históricas daqueles que foram vítimas da justiça militar do tempo, dos seus fundamentos e abusos?
É impressionante ver que essa questão, que tinha sido conduzida pelos próprios antigos combatentes nos anos 20 e 30, tomou cada vez mais importância nas memórias de guerra em França, a partir dos anos 90. Há sem dúvida múltiplas explicações para esse regresso, para essa presença: a importância dos usos políticos do passado na França contemporânea, o facto dos fuzilados aparecerem por vezes como “as vítimas” da guerra e, logo, poderem simbolizar muito...

Qual é a “solução da memória cultural e política” que a comissão propõe?
A comissão não tinha intenção de dar uma solução definitiva aos debates da memória em torno dos fuzilados. Nós não estamos numa posição de “especialistas” que sabem tudo e receitam uma solução. Mas temos descrito as diferentes possibilidades de tratamento da memória dessas questões. Pareceu-nos que uma solução de tipo político e cultural (discurso do chefe de Estado, exposições e museografia em torno dos fuzilados) era sem dúvida mais fácil de pôr no lugar, do que aquelas de tipo jurídico (reabertura de dossiers, etc.). Ela podia também mostrar-se mais durável que uma lei ou uma complicada medida administrativa.

Recentemente organizou uma estimulante conferência sobre o papel das tropas e das comunidades africanas na I Guerra Mundial. A conscrição militar obrigatória (nas frentes europeia e “colonial”) e o uso compulsório de mão-de-obra africana foram dois assuntos constantemente debatidos. Quais eram os principais propósitos da conferência?
A conferência tinha três objectivos. O primeiro era científico: fazer uma síntese dos conhecimentos sobre as tropas coloniais das quais se fala muito superficialmente, mas que não estão tão estudadas. Em segundo, tratava-se de dar a conhecer as questões que referiu a um público mais alargado que os universitários. O encontro foi aberto e tivemos várias centenas de assistentes. E os textos apresentados vão ser disseminados. Por fim, havia uma questão relativa à memória: no tempo do centenário, era necessário recordar como a dominação colonial era exercida sobre milhões de súbditos coloniais, em todos os impérios no momento particular da guerra.

O que pensa que é crucial sublinhar relativamente a este tema?
Penso que sendo uma questão de espaço público, de política interna e externa, particularmente em França, a questão colonial tem que ser iluminada por historiadores com conhecimentos sólidos. Pelo menos por uma questão de princípio, mesmo se com poucos efeitos práticos.

Alguns historiadores e jornalistas defendem a existência de importantes legados e “lições” históricas oferecidos pela história da I Guerra Mundial que podem ser úteis para a compreensão de acontecimentos contemporâneos. Qual é a sua opinião sobre isto?
No geral, eu não creio de todo em “lições” da história. A única lição da história, como disse, mais ou menos, Desmond Tutu, é que não existem lições da história. Em contrapartida, para mim, a Grande Guerra é um terreno fértil para reflectir sobre as questões do nacionalismo, sobre aquilo que quer dizer construir uma sociedade ou ainda sobre a obediência e a desobediência...

Amanhã: Celebrar a vitória em dia de Derrota - Afinal a quem pertencem as políticas da memória da I Guerra Mundial? Por Sílvia Correia, Professora do Instituto de História da Universidade Federal Rio de Janeiro/Investigadora do IHC/UNL

 
 

   




 

   




 

   




 

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Soldados franceses e ingleses em confraternização na Frente Ocidental Colecção Portugal na Grande Guerra/Arquivo Histórico Militar
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Desfile de tropas do CEP em Brest, pouco depois do desembarque, no início de 1917 Agence Rol/Bibliothèque Nationale de France
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