Fotografia 2.0. Verdades ou mentiras?

Uma vintena de jovens artistas mostra as novas práticas da fotografia contemporânea espanhola.

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The Waiting Game, de Txema Savans, abre a exposição comissariada por Joan Fontcuberta. Salvans fotografou a prostituição nas estradas de Espanha e aplica-lhe a ferramenta Google Maps para expor o que a tecnologia às vezes não deixa ver Txema Savans

Algumas sentam-se, outras estão em pé. Podem usar cadeiras brancas de plástico, uma ou outra vez um sofá, ou encavalitar-se nos rails da estrada. Têm pouca roupa no corpo e, na maioria, estão com sapatos de salto alto. Mal se entra na sala do 1.º andar do Círculo de Bellas Artes, em Madrid, este é o cenário: uma parede coberta de prostitutas fotografadas ao longo de anos na rede rodoviária espanhola por Txema Salvans. O que o catalão faz a seguir é recorrer à ferramenta Google Maps e, num computador que deixou para ser usado por quem passa pela exposição, mostra os mesmos sítios, os mesmos recortes da estrada que acaba por ser terra de ninguém e onde convivem a família no piquenique de domingo e o mercado do corpo. Não que necessitemos daquela informação de GPS, mas é por isso que fica a mensagem: a tecnologia pode ocultar o que está lá.

O que o comissário Joan Fontcuberta quis para esta exposição foi questionar o humanismo digital, i.e., o que fazemos com estes seres em que nos tornámos: homo-photographicus com excesso de informação mas incapazes de valoração.

Fotografia 2.0. desdobra-se por três áreas, todas com vontade de nos sacudir a consciência. Na primeira, o foco está na hipervisibilidade e banalização do acto fotográfico, no voyeurismo e na perda de intimidade. São os trabalhos The Waiting Game, de Txema Salvans, de XYXX, de Fosi Vegue, de Karma, de Óscar Monzón.

Vegue, por exemplo, tem para mostrar uma série de imagens roubadas à intimidade de anónimos. Durante algum tempo, no escritório que ocupava em frente a um bordel, fotografou prostitutas e clientes, pedaços de corpos sem nome, segredos de luxúria alheia. Para ver este trabalho, é preciso correr uma cortina preta e entrar numa sala na penumbra. O que quer dizer Vegue? Que a devassa se torna um caminho fácil com uma câmara na mão. Logo ao lado está o registo paparazzo de Monzón: planos apertados sobre pessoas dentro de carros em situações e posições que sugerem intimidade, ignorando a proximidade do fotógrafo.

Passa-se para o segundo momento decisivo da exposição e a proposta é a formulação da identidade social e de uma narrativa biográfica. Daniel Mayrit, entre outros, tem para mostrar You haven’t seen their faces (brincando com o trabalho vertido em livro da fotógrafa Margaret Bourke-White, em 1937). Vamos deter-nos um pouco nesta série de 100 retratos, não pelo valor dos mesmos mas pela ideia que lhes está por trás. O cenário é Londres, Agosto de 2011, e carece de algum contexto. A polícia tinha morto a tiro Mark Duggan, durante uma perseguição em Tottenham, um bairro conhecido pelas tensões entre a comunidade, sobretudo negra, e as autoridades. O caso desencadeou motins em vários bairros londrinos e espalhou-se a outras cidades durante duas semanas. A polícia distribuiu folhetos com os rostos de alguns dos manifestantes, fotografias tiradas pelas câmaras de vigilância e, por isso mesmo, de qualidade duvidosa. Mayrit pega na mesma ideia de falta de qualidade digital e manipula as fotografias de 100 figuras, as que a revista Square Mile identifica como os mais influentes da City e, em grande parte, responsáveis pela crise económica e financeira. Desfilam o banqueiro português António Horta Osório ao lado do mayor Boris Johnson; o governador do Banco de Inglaterra, Mark Carney, ao lado do CEO da Goldman Sachs Internacional, Michael Sherwood; Ana Botín, CEO do Santander Inglaterra, ao lado de lord Rothschild, e por aí fora.

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Mark Carney, governador do Banco de Inglaterra, um dos 100 painéis fotográficos de Daniel Mayrit em You haven’t seen their faces. Quando as câmaras de vigilância nos registam, registam o quê?

Memória é substantivo recorrente no PHotoEspaña 2014, umas vezes em propostas mais formais, noutras menos evidente, como Data Recovery, de Diego Collado. É um dos trabalhos que se exibem na parte final de Fotografia 2.0. Emolduradas, as imagens mostram pedaços da fotografia que já foram e que alguém quis eliminar do seu álbum pessoal. Situações que ficam a meio caminho de coisa nenhuma, ou de uma outra coisa que terá vida própria apenas na interpretação que cada um lhe quiser dar. A amnésia cura-se com a invenção de outras memórias. É o culminar de uma “inconsciência tecnológica post-fotográfica”, como lhe chama Joan Fontcuberta.

Fotografia 2.0. pode ser vista até 27 de Julho no Círculo de Bellas Artes, Madrid


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