O fim da ilusão

Quando Jennifer Egan captou o interesse mediático e viu os seus esforços recompensados com a publicação do romance A Visita do Brutamontes — Prémio Pulitzer e National Book Critics Circle Award em 2011 —, já tinha anteriormente ensaiado, neste seu primeiro romance, O Circo Invisível (1995), uma visita saudosista e bastante menos cínica aos movimentos da contracultura dos anos 1960/70. A trama desenrola-se em torno de Phoebe, cuja passagem para a adolescência é acompanhada pelos habituais traumas familiares, por dúvidas existenciais e pela alienação própria do crescimento. No início do livro, Phoebe vive com a mãe, mais ausente do que presente, em São Francisco, nos finais dos anos 1970 — ou seja, no epicentro do turbilhão das drogas, do sexo livre e do rock’n’roll. É uma jovem desorientada e frágil, à procura de algo que a sua insegurança e a nuvem provocada pelo fumo dos charros não permitem distinguir com clareza: o pai, que ambicionava ser um artista famoso mas era apenas um mau pintor, morreu, a mãe atravessa um renascimento físico e psicológico com outro homem e o irmão faz fortuna com as novas tecnologias emergentes e submete-se às impiedosas leis do deus-dinheiro, abandonando o ideal hippie da liberdade e do despojamento.

Phoebe encontra-se num período crítico da vida. Terminou os estudos do secundário e não consegue encontrar um rumo, enquanto se debate com a sombra de um drama que a marcou profundamente: a morte, oficialmente um suicídio, da sua irmã Faith, oito anos antes, em Itália. O mistério do seu desaparecimento, quando viajava pela Europa numa travessia de aventura e auto-destruição, persegue Phoebe, que decide retomar a trajectória da irmã, numa tentativa de compreender o seu acto. Impulsivamente, larga o emprego e parte para Londres — e daí para o continente: Holanda, França, Itália —, seguindo o percurso que Faith deixou bem marcado pelo envio de postais para casa. Ao sabor de encontros fortuitos, de pistas desvanecidas pelo tempo, de revelações contraditórias e de esperanças goradas, leva a cabo um doloroso processo, cheio de armadilhas, à sombra funesta dos mitos construídos em torno das figuras do pai e de Faith, unidos por ideais movediços e destinados a um fim trágico.

Um dos temas mais interessantes deste livro está relacionado com uma tradição bem implantada na literatura norte-americana e pontualmente desmontada por autores como Nabokov: trata-se do fascínio que a Europa, simultaneamente sedutora e perigosa, impõe aos nativos do Novo Mundo. Autores como Henry James e Edith Wharton atravessaram o Atlântico para irem “beber”, na cultura europeia, uma antiga tradição clássica que lhes refinava o espírito, ao contrário de Faith, e mais tarde, de Phoebe, que se sentem compelidas a retomar as antigas rotas iniciáticas, embora a inquietação e a curiosidade dos seus antepassados se tenha transformado numa mera deambulação errática e destituída de sentido. A Europa dos anos 1960 e 1970 encontra-se num processo de profunda transformação: os movimentos estudantis de Maio de 68, revolucionários e idealistas, dando origem, na década seguinte, a uma permanente insegurança social, ao radicalismo político e a acções terroristas de grupos como o Baader–Meinhof e as Brigadas Vermelhas funcionam, aqui, como cenário da descida aos infernos de Faith e de Phoebe nas suas demandas existenciais.

O Circo Invisível não é um grande romance e mostra as fragilidades próprias de uma primeira obra: o início titubeante, a dificuldade em encontrar e em manter um ritmo e a evidente vontade, por parte da autora, de abranger o maior número possível de temas, de personagens e de lugares enfatizam o aspecto “circense” — ilustrado numa cena onírica, no início do livro, quando a então muito jovem Phoebe encontra a irmã e os seus estranhos e “coloridos” amigos a banquetearem-se na cozinha a altas horas da noite — do que mais parece um pastiche desse tempo. Um tempo que, para uns, representou o apogeu da transgressão, do contrapoder, da resistência e que para outros, como Egan, significou o início de um processo de decadência mental e psicológica. Frases como “quer-se a paz e pega-se em armas… usam-se drogas para abrir o espírito e [fica-se dependente] da heroína…” (p. 151) sobrecarregam a narrativa como mantras, com tendência para a banalização. Perante o olhar da autora, pavoneiam-se os representantes dessa orgia de paz e amor, de liberdade e de individualidade narcísica, ancorada nas boas intenções dos movimentos pacifistas, do Flower Power e da revolução sexual. No turbilhão de criatividade e loucura, de abandono e irresponsabilidade, as personagens de Egan contêm já, em si próprias, a semente brutal das décadas materialistas e desapiedadas que se seguiram.

Apesar das falhas já apontadas, a autora revela, no entanto, a sua agilidade na escrita e a sua ligação à cultura pop, que por ela tem sido explorada em obras subsequentes e em torno da qual tem levado a cabo uma pertinente e sistemática “pesquisa arqueológica”. 

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