O povo que comia ervas

A actividade jornalística de Raul Brandão, dispersa por diversas publicações periódicas, reunida com esmero

Vasco Rosa acrescentou em cerca de 50 o número de escritos dispersos de Raul Brandão (1867-1930) que já reunira num livro anterior. A tarefa a que pôs ombros é digna de um rato de biblioteca. É que só através de autênticas escavações por publicações periódicas foi possível alargar o conhecimento da actividade jornalística do autor de Os Pescadores. Da leitura das quase 500 páginas agora editadas com esmero, algumas ideias merecem comentário.

Antes de mais, as imagens acerca do povo constituem um dos temas mais recorrentes dos escritos de Raul Brandão. Povo de camponeses e pescadores que impressiona por viver sempre no limiar da pobreza. A crítica a Os Famintos, de João Grave, serve aqui de padrão, porque o povo passava fome. E, como teria contado Augusto Fuschini a Brandão, duas ou três povoações situadas em torno da casa onde passara o Verão chegavam a alimentar-se de ervas cruas...

Se a fome e a miséria se constituíam na norma de um povo que vivia em condições muito precárias, havia excepções. Para os pescadores, por exemplo, dos seus barcos, “pequenos e frágeis”, nunca se sabia se a rede não poderia vir cheia. Era, então, que a esperança se reacendia. Depois, havia momentos que, embora fugazes, contrastavam com os tormentos de um tal quotidiano. Eram as festas, recordadas nos versos de António Nobre: “Georges! Anda ver meu país de romarias/ E procissões!”.

Porém, não se julgue que às mesmas condições de miséria generalizada não correspondia uma enorme diversidade de identidades. A cada aldeia a sua cultura, a cada povoado o seu carácter específico. Por isso, o rei D. Luís não terá estranhado quando, do alto do seu iate, perguntou a um grupo de pescadores: “- Vocês são portugueses? - Não senhor - respondeu o mais loquaz -, somos poveiros.”

Tal anedota, reproduzida nas histórias de Portugal de António Sérgio, Rui Ramos e José Mattoso, serviu aos dois últimos para ilustrar os limites de uma integração nacional em finais do século XIX. Na interpretação mais sociológica de Brandão, a mesma anedota revelava sobretudo que “ser poveiro, entre nós, é casta à parte. Pior do que isso: humilde casta... quase estrangeira. Ninguém pensa em socorrê-los.” Seguindo a mesma interpretação, a questão não estará em interpretar a anedota para medir o grau de consistência da identidade nacional, mas em saber lê-la como expressão de uma recusa dos poveiros em relação a uma pergunta que lhes foi lançada do alto de um iate...

O povo, nomeadamente os pescadores, teria de contar, isso sim, com a protecção do Estado. Ou, pelo menos, o Estado não deveria apoiar - a bem do progresso - os interesses dos monopólios e dos ricos. Os vapores de pesca, por exemplo, mais as redes de malha miúda que matavam a criação, acabavam por afugentar da costa “o peixe graúdo, que outrora se tirava do oceano aos centos”. A ponto de povoações que outrora contavam com uma dúzia de barcos terem ficado reduzidas a uma lancha. Enfim, “O sr. Governo - é assim que os pescadores conhecem o Estado -, consentindo na exploração do mar pelos vapores, reduziu as populações costeiras à miséria.”

Através desse e de outros exemplos, Brandão alinhava com as “doutrinas definidas com o nome de socialismo do Estado”, a que o seu amigo Fuschini se referia com entusiasmo, considerando-as necessárias para Portugal. É que o Estado, como afirmava este último, “deve ser o regulador do movimento social, espectador atento quando o mecanismo social funciona regularmente, activo agente quando os interesses se enredam, os direitos se confundem e as classes sociais se precipitam umas sobre as outras em lutas egoístas” (A crise agrícola, Lisboa, 1888).

E se o Estado tinha de intervir em defesa do povo, nenhum regime poderia subsistir sem o seu apoio. Conforme sustentA, a respeito da implantação da República em Outubro de 1910: “Ao lado das tropas monárquicas não apareceu um único popular a defendê-la.” E mais adiante acrescentA: “Foi esse povo, a gente rude, que fez a República - é para ela que a República, se quiser viver, medrar, crescer como uma árvore de prodígio, tem de ser feita.”

Com as suas tendências monárquicas, bem pode Vasco Rosa indignar-se, mas será difícil aceitar uma interpretação de Raul Brandão amputada de toda a solidariedade com o povo e que ponha de lado os ideais socialistas e republicanos de um dos colaboradores da Seara Nova (1921). A este respeito, melhor seria se, no prefácio, tivesse sido sugerido o paralelo entre a obra de Brandão e a vaga de estudos etnográficos, de Rocha Peixoto a Adolfo Coelho. Com a única diferença de que, na obra de Brandão, se afigura mais clara a necessidade de o Estado intervir para melhorar as condições de vida do povo.

Mas há um ponto de indignação em que Vasco Rosa tem razão. Basta de tanta ignorância alarve e de desprezo pelas obras de Raul Brandão e outros grandes escritores da nossa literatura! Aliás, a indignação pelo esquecimento em que caíam as obras de escritores e intelectuais inspira-se nas próprias denúncias do autor. Herculano fugiu para Vale de Lobos. Junqueiro sumiu-se em Barca d''Alva. Camilo, no buraco de S. Miguel de Seide, “foi agredido até ao fim dos seus dias”. Também o grande Columbano “viveu anos de colorir desenhos num jornal”. Por sua vez, Fialho de Almeida, ferido no seu orgulho, entregou-se às noites de boémia e reagiu com ironia e sarcasmo “para tudo e para todos”. Enfim, tal como sucedia com o povo, também os escritores sofriam e de que maneira. “Não há no mundo país como o nosso - concluía Brandão - que trate os seus sonhadores e os seus poetas com idêntico desprezo: quando surge uma boca formidável o nosso ideal é logo matá-la à fome. A malta chega a odiar os seus homens de génio: se pudesse despedaçava-os”.

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