A morte e a vida de Goro Hanawa

O Nobel da Literatura de 1994 parte do suicídio real de um amigo para reflectir sobre a existência e a perda da inocência

Apesar de ser reconhecido como um dos mais importantes escritores japoneses do século XX e de ter ganho o Nobel da Literatura em 1994, Kenzaburo Oe não goza da mesma difusão ocidental de nomes como Yukio Mishima, Yasunari Kawabata ou mesmo de contemporâneos mais populares como Haruki Murakami ou Banana Yoshimoto. Em Portugal, depois de o Nobel ter incentivado as editoras a experimentar, a relação com Oe voltou a esfriar e desde 1997 que não se publicava por aqui qualquer tradução dos muitos livros que vem escrevendo desde 1958.

A esse relacionamento distante com um dos grandes escritores do século XX muito se deve a ausência de tradutores em Portugal versados em japonês (para este As Regras do Tagame recorreu-se à tradução inglesa) e à dificuldade da prosa de Oe, conhecido por trabalhar as suas obras até à exaustão, reescrevendo-as até já não ter espaço na folha em branco. Além do mais, se Murakami e Yoshimoto se preocupam em escrever para o mundo sobre experiências universais, Oe continua a escrever para si sobre alguns temas pessoais - a sua aldeia perdida na ilha de Shinsaku, a tradição de contar histórias que lhe foi passada pela mãe, o nacionalismo japonês, as armas nucleares, a experiência de ter um filho deficiente e os autores que lhe povoam o pensamento.Especialista em literatura francesa, grande conhecedor das obras dos maiores escritores de língua inglesa, leitor de Dante e de Dostoiévski, Kenzaburo Oe foi ao longo dos anos perdendo leitores no Japão, devido a uma prosa árida que recusa concessões e que ao invés de ir construindo pontes as foi queimando. Numa entrevista em 2007 à The Paris Review, o próprio reconhecia o seu papel activo na erosão de receptores: “Um bom escritor não tenta normalmente destruir a sua voz, mas eu estou sempre a tentar destruir a minha.”

É uma experiência que pode ser sentida em As Regras do Tagame, publicado originalmente em 2000 como primeira parte de uma trilogia que se completa, usando os títulos em inglês, com The Child of the Sorrowful Countenance (2002) e Good Bye, My Book (2005) - chamou-lhe trilogia dos pseudo-casais, porque trata de ligações entre pares de personagens que não estando casados têm vínculos entre si. Abalados pelo caminho difuso que se nos abre como leitores, As Regras do Tagame chega a tolher-nos o entusiasmo com a dimensão radicalmente racional dessa prosa cartesiana até à medula (o nome Kogito é uma referência ao “penso, logo existo” de Descartes), capaz de perguntar, de pôr em causa, de ponderar, de conjecturar imaginativamente, mas incapaz de expressar emoções.Na busca das razões por trás de um suicídio, Oe reflecte sobre a morte, a vida, a perda da inocência, a literatura, o cinema e a criação feita de camadas acumuladas de memória. Para isso, a narrativa recua e avança no tempo, juntando detalhes, reiterando outros através de diferentes perspectivas, questionando-se e questionando até o próprio narrador quanto à sua capacidade literária e à frieza da sua escrita. A esta técnica chama-lhe Oe “divergência reiterativa” e Kogito Choko, o seu alter-ego, fala dela no livro.

A enriquecer ainda mais este quadro de camadas sobrepostas está a sua dimensão autobiográfica de base (aliás, como toda a obra do escritor, cuja proximidade com a literatura do eu japonesa é sumamente ressaltada): o suicídio do cineasta Goro Hanawa, amigo e cunhado de Kogito. Em 1997, o popular e carismático realizador Juzo Itami, amigo de infância e cunhado de Kenzaburo Oe, suicidou-se, saltando para o vazio do alto do edifício da sua produtora em Tóquio, deixando os seus mais próximos às voltas com a incompreensibilidade do acto.

O fascinante deste livro é que, partindo da morte, fala de vida, de momentos modeladores na biografia de cada um de nós, desses episódios que nos transformam definitivamente e a partir dos quais já não podemos voltar à condição anterior - da perda da inocência (daí o título em inglês, Changeling, na sua referência ao mito europeu da criança trocada, ser muito mais revelador do que o escolhido para a edição portuguesa). E se da morte se fala, porque esse é o pretexto da reflexão, o assombroso é que há pouca amargura na prosa de um escritor que no final dos anos 90 já estava quase na idade da reforma e perdera os seus amigos mais íntimos.

Talvez por isso, um livro que se propõe encontrar as razões para um suicídio e se multiplica nos dispositivos de busca (inclusive o de “falar” com os mortos através das cassetes que Goro gravou para o seu amigo e com as quais Kogito estabelece um diálogo quase vivo através do Tagame, velho gravador baptizado com nome de ser vivo, o da barata de água que Kogito via nos riachos da infância: os auscultadores na cabeça lembram os olhos do insecto...) chegue a tão poucas conclusões. E serenamente acaricie a ideia - através do subterfúgio literário de trocar de narrador, deixando a reflexão entregue à mulher de Kogito, Chikashi - de que a vida é um contínuo de gerações, onde quem nasce ocupa o lugar de quem parte e, se calhar, todos nascemos um pouco daqueles que nos precedem.E se o Adieu de Rimbaud perpassa todo o livro como o ponto final da inocência, a marca de que ninguém volta a ser o que era ou a escrever com o mesmo impulso da juventude, é a uma peça de Wole Soyinka (Death and the King''s Horseman), o Nobel da Literatura nigeriano, que Oe vai buscar o remate para este livro: “Agora esqueçam os mortos, esqueçam até os vivos. Pensem apenas naqueles que ainda não nasceram.”

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