Um rosto sem máscaras

A autobiografia de Ingmar Bergman é uma obra confessional sobre as impressões de uma vida dividida entre o cinema e o teatro

Em 1957, Ingmar Bergman realiza Morangos Silvestres, história de um velho professor que viaja até à sua universidade para uma cerimónia de jubilação. No seu percurso, cruza-se com os rostos conhecidos dos que habitam ainda, na sua imaginação, os lugares em que o próprio viveu durante a sua infância. É ao passar por esses sítios que o professor irá reviver algumas dessas memórias, enquanto espectador, e que irá sentir, em momentos de sonho, outros julgamentos sobre a distância que a partir daí o separou dos seus próximos. Esse professor amargurado é interpretado por Victor Sjöström, mestre do cinema sueco a quem Bergman faz justa homenagem, mas foi nesse papel que Bergman terá colocado mais de si próprio, não apenas nos sentimentos mas também na insegurança da personagem, protegida por uma máscara adulta rígida e por um desejo de regressar ao mundo de impressões, inocência e pureza dos primeiros momentos - a infância e a adolescência, altura de intensa descoberta das capacidades de viver e amar antes do triste encontro com o sofrimento e os compromissos da vida adulta.

Lanterna Mágica, editado pela primeira vez, em língua original, em 1987, depois de Bergman lançar Fanny e Alexandre (1982) e anunciar a sua retirada do cinema (apesar de obras posteriores realizadas para televisão, como o fabuloso Saraband, de 2005), responde a esse mesmo desejo do professor. Lugares e personagens são então revisitados em capítulos que não obedecem a uma cronologia, mas às sensações que se guardaram dos seus momentos, revividos por um autor - um génio, ou como se queira chamar a Bergman - que se reduz à confissão mais humana possível: o medo e o falhanço com que lidou com a sua família, os seus casamentos e os seus filhos (tanto os filhos reais como os filmes e as encenações), preso à insatisfação (ou à neurose) de viver uma vida mortal, finita, logo, sem propósito. “Criei em mim uma outra pessoa que, exteriormente, nada tinha a ver com o meu verdadeiro eu. E como não fui capaz de manter separados o que eu era, propriamente, e a criação que fizera de mim, esta ferida teve consequências mesmo até na idade adulta e na minha criatividade. Quantas vezes não tive de me consolar com a máxima: ''Quem viveu de uma mentira é porque, no fundo, ama a verdade.''”

Foi na projecção de uma imagem que durava sempre que Bergman encontrou a sua razão de vida, lembrando o cinematógrafo da sua infância. “Sempre que quero, consigo recordar o cheiro que exalava o metal aquecido da caixa, o cheiro do produto contra as traças que havia no guarda-fatos, o pó, a pressão da minha mãe na manivela, o rectângulo, projectado, a tremer.” A partir daí, decidiu que todos os elementos da vida real deveriam ser vividos, apaixonadamente, no cinema. Mas Bergman talvez não tenha filmado mais do que a incapacidade em dar-lhe sequência na vida real, em manter uma sensação pura e de felicidade entre dois seres que esperam sempre o seu fim - a morte, também evocada de forma tocante e inocente, como o próprio jovem a viver o seu primeiro amor: “Comecei então a falar com Märta sobre a Essência do Amor. Digo-lhe que não acredito que um amor possa durar eternamente, que o amor do Homem não é se não egoísmo, como Strindberg afirma na sua peça O Pelicano (...). Apertámos as mãos para nos despedirmos e dizer que talvez nos víssemos no próximo Verão (...). Eu fui andando pelo talude da linha do comboio, de volta a Våroms, ocupado com um único pensamento: ''Se vier algum comboio agora, não me importo que me mate.”

A solução estaria em eliminar a fronteira entre a vida e a sua interpretação, num palco ou numa tela: “Há um prazer sensual quando se trabalha tão perto de pessoas criativas, fortes e independentes, como o são actores, ajudantes...”. Um mundo onde Bergman se refugiou para se apaixonar, com frequência, pelas suas protagonistas, como Liv Ullman em Persona (1966) ou Harriet Andersson em Mónica e o Desejo (1953), assim relembrado: “De um momento para o outro desapareceram todas as minhas preocupações (...). Fazíamos uma vida ao ar livre, relativamente confortável, trabalhávamos durante o dia, à noite, de madrugada, fizesse o tempo que fizesse.”

Mas esse tempo também encontrava o seu fim, e então não é o génio que se confessa, mas o homem que tirou a máscara de adulto e admite as inseguranças espelhadas nos seus próprios sonhos: “O meu problema no sonho é conseguir que comecemos a filmar. Mas devido à minha incapacidade profissional há uma quantidade de actores e figurantes encurralados a um canto do estúdio (...), está toda a gente à espera de alguma coisa, com paciência mas sem grande esperança.” Ou na sua homenagem a Sjöström e ao cinema que o fez querer viver: “Só muito mais tarde compreendi que todo aquele teatro, com a promessa de o deixar beber o uísque às quatro e meia, bem como a sua rabugice de velho, não era se não um medo terrível de não ser capaz de desempenhar a tarefa que aceitara, um medo de se sentir cansado ou indisposto, ou simplesmente não inspirado”, diz sobre o seu mentor. “Afinal agora sou eu quem se encontra nos mesmos apuros.” Que os tenha filmado tenha talvez sido uma dádiva divina.

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